A música regressa hoje ao seu habitat natural, com o arranque de mais uma edição do Vodafone Paredes de Coura. João Carvalho esteve à conversa com o NOVO sobre as crescentes dificuldades de organizar um festival de música em Portugal e sobre como Paredes de Coura – a vila e o festival – gostam de receber os milhares de festivaleiros que por estes dias rumam à praia fluvial do Taboão, junto ao rio Coura.

O festival arranca esta tarde, com as atuações de Wolf Manhattan, às 17h30 no palco Yorn, e de First Breath After Coma + Noiserv + Banda de Música de Mateus, no palco Vodafone às 18h10, e prolonga-se até à madrugada de domingo.

Entusiasmado para mais um Paredes de Coura?

Muito entusiasmado. O entusiasmo nasce precisamente porque as vendas estão a correr muito bem, os preparativos também… O festival está praticamente montado, quase podíamos começar hoje. Hoje é o dia de pequenos pormenores, é quase como teres uma casa nova e depois estás ali a dar uns retoques na decoração. É um cartaz que consegue trazer cerca de 20 mil pessoas por dia, sendo um cartaz indie, sem aqueles mega cabeças de cartaz… Isso é um feito. É um cartaz muito consistente, com nomes do antigamente, com nomes que são fenómenos atuais, com nomes que vão ser fenómenos no futuro. Posso dar exemplos. Se olhares para o cartaz, vês Model/Actriz, Bar Itália, Tramhouse, Destroy Boys… Enfim, uma série de bandas que têm um futuro brilhante pela frente. Se quiseres pegar, por exemplo, nos Fontaines D.C., garantidamente que é uma banda para fazer estádios daqui a dois ou três anos, é uma banda que está a agigantar-se. Mas depois tens também os Slowdive, The Jesus and Mary Chain, Andre 3000… Estou muito curioso para ouvir ao vivo, num concerto tão peculiar, mas acho que é o sítio certo para ele trazer este espetáculo, porque temos um público melómano e respeitador. Estou curioso para ver Sampha, os Glass Beams, mais uma das bandas que está a crescer imenso e que brevemente vão ser cabeças de cartaz em grandes festivais. Killer Mike, que ganhou três Grammys… Se formos a ver isto por prémios, temos aqui realmente muitas bandas que ganharam prémios ou distinções de melhor disco do ano. São tantos os nomes que tenho tendência a esquecer-me do Protomartyr, por exemplo, Beach Fossils, que é uma banda que eu adoro… Dorian Concept, enfim… Acho que é dos melhores cartazes de Paredes de Coura e Acho que vai ser das melhores edições de sempre, em termos de concertos.

Precisamente sobre o cartaz, como foi programar este cartaz?

É sempre uma coisa morosa e complicada. Estás dependente de uma série de fatores: de digressões das bandas, de elas fazerem tour em determinado ponto da Europa… Costumo dizer que, se desenhar um cartaz e conseguir 20% daquilo que desenho imediatamente a seguir a um festival… Começo a preparar o próximo agora, aproveito aqui no recinto, à conversa com alguns agentes, para tentar perceber o que vai acontecer no próximo ano… Às vezes tens um cartaz ideal em que, por uma razão ou por outra, vais perdendo bandas e tens que fazer adaptações. Este ano posso dizer que, daquilo que tinha planeado, não devo ter 20% (risos) É sempre uma vitória chegar ao fim e conseguir fazer um grande cartaz como acho que este está.

João Carvalho: “A Ritmos e o Paredes de Coura têm uma história de resistência”

O ano passado falámos das dificuldades em continuar a organizar festivais, ainda por cima quando há cada vez maior oferta. Quais são para ti os maiores desafios em organizar um festival e um festival como o Paredes de Coura?

Este é provavelmente o festival mais difícil de fazer em Portugal, por todas as condicionantes, não é? É no meio da natureza, num pequeno concelho onde não há hotéis, não há as grandes empresas, a mão de obra escasseia… As grandes empresas de infraestruturas vêm todas de fora, o que torna a coisa mais cara. Geograficamente é também um terreno complicado de trabalhar, porque queremos que ele respire natureza e somos muito cuidadosos a montá-lo… E depois há a questão das bandas, porque qualquer festival que se faça em Portugal, ou no mundo, tem outro festival num país vizinho ou até no mesmo país. Nós não temos rigorosamente nenhum festival, nem em Espanha, nem sequer em França, no mesmo fim-de-semana… – falámos disso o ano passado –, portanto, as bandas que vêm ao Paredes de Coura vêm propositadamente a Paredes de Coura, não têm nenhuma outra data num país aqui ao lado. Nós temos a força de as bandas gostarem de vir a Paredes de Coura e portanto ficam memórias. Os artistas falam entre eles, os agentes falam entre eles… Nunca têm faltado boas bandas, mas há anos mais complicados que outros. Posso dizer que, por exemplo, o ano passado, o orçamento era bastante mais elevado do que é este ano.

Foi o mais caro de sempre…

Foi mais caro do que este ano e posso dizer que este ano temos praticamente o dobro das vendas. Nem sempre o investimento quer dizer que vem mais público. O ano passado, como havia poucas bandas, tiveste que fazer ofertas grandes, porque as bandas não têm um preço fixo, para tentar ter alguns nomes sonantes, porque Paredes de Coura, como muita gente diz, é um laboratório musical, onde se vê pela primeira vez muitas bandas, mas também precisa de nomes conceituados. Loyle Carner e Little Simz, o ano passado, não lhes dava jeito e tivemos que investir mais um bocadinho. A própria Lorde não era, nem de perto nem de longe, primeira, segunda ou terceira prioridade, mas a verdade é que, a precisar de um nome grande, tivemos que ir por aí. As dificuldades são… Sabes que ontem dei uma entrevista em que disse que a grande novidade é a repetição. Acho que não se deve mexer no que está bem, a não ser para melhorar, pequenos retoques… Acho que a grande novidade é mesmo essa. O conceito do festival é este: apostar em novas bandas, ser um festival de tendências, onde cabe todo estilo de música, cuidar das pessoas, e isso fazemo-lo cada vez mais. Melhorámos as zonas de alimentação, o campismo… Mas não deixa de ser uma fórmula que já fazemos há muitos anos e, portanto, é cuidar dela e fazer da repetição uma coisa boa.

Como correram as contratações de bandas em parceria com outros festivais internacionais de que falaste o ano passado, no final do festival?

Conseguimos, ainda fizemos algumas. Algumas bandas que estão, por exemplo, a tocar no Lowlands e no Pukkelpop tocam lá sábado e domingo e vêm tocar aqui na quinta-feira… Killer Mike, Sleater-Kinney e Girl in Red…  O ideal era ter um festival em Espanha, quem me dera ter um festival em Espanha no mesmo fim-de-semana. Facilitava-me imenso a vida…

O ano passado comentámos que o Paredes de Coura nasceu de uma brincadeira de miúdos , foi crescendo e tornou-se numa coisa séria. Continuas a divertir-te a fazer o Paredes de Coura? A fazer o Primavera?

Exatamente igual há vinte ou trinta anos. Continuo a fechar bandas e a comemorar com o mesmo entusiasmo. A minha casa tem sempre uma garrafa de champanhe fresca no frigorífico… (risos) Comemoro cada contratação, independentemente de ser grande ou pequena. Se é uma banda que quero e consigo, fico feliz e entusiasmado… Não sou só eu, são também os meus sócios, vivemos felizes para o festival como vivíamos há trinta anos. Isto é uma história bonita. Chamo-lhe o nosso pequeno milagre, porque não é fácil fazer aqui um festival. Ainda há pouco falávamos de outros festivais, em Lisboa, que não têm corrido assim tão bem… Como é que este, no interior, funciona? Porque cuidamos das pessoas e as pessoas sabem que fazemos um esforço grande para que se divirtam e se sintam em casa. É a coisa que mais gosto de ouvir, as pessoas dizerem “regressamos a casa”.

Não é por acaso que é chamado de habitat natural da música…

Exatamente! É aquela coisa de voltar a casa dos pais ou dos avós.

Paredes de Coura: 30 anos igual a si mesmo

Houve muitas bandas que vieram a Portugal a primeira vez em Paredes de Coura e depois explodiram… Coldplay, LCD Soundsystem, Arcade Fire…

Queens of the Stone Age, The National… Vieram aqui em 2005… Lembro-me perfeitamente que tinham um cachet que hoje é o que eu pago a uma banda pequena de jazz ali no Jazz na Relva e entretanto se agigantaram. Mr. Bungle, Flaming Lips… Têm sido muitas as bandas que tocam aqui pela primeira vez, como tenho a certeza absoluta que olho para este cartaz…

Era essa a minha pergunta: pensas nisso? Uma banda que ainda não veio a Portugal e se calhar vai ser a próxima a explodir…

Não faço de propósito… Faço porque gosto de música e porque procuro artistas talentosos. Alguns explodem, outros não, não é? Também há bandas que penso que vão agigantar-se e depois acabam por não crescer ou separar-se. Não faço com esse objetivo, mas fico contente quando a banda se agiganta e de repente de um cachet de 100 mil passa para um milhão… Quer dizer que estou a fazer o meu trabalho bem feito. É como ser olheiro de um clube de futebol e descobrir o próximo grande craque. Não vivo com esse objectivo, mas vai acontecendo…

O Sobe a Vila é uma maneira de o festival retribuir à vila o acolhimento que faz aos festivaleiros?

É. É uma forma de perpetuar a experiência. Desde anteontem deve haver sete ou oito mil pessoas a acampar… Ontem viram-se muitas dessas pessoas na vila. É a forma de agradecer à vila, é a a forma de o comércio poder faturar, porque nos dias de festival as pessoas estão mais cá em baixo do que lá em cima. É o nosso grande abraço aos Courenses, que têm sabido receber muito bem o festival.

Como escolhes as bandas? É a mesma filosofia do festival?

É a mesma filosofia. Essa é a parte mais difícil, sabes? Tenho muita dificuldade em contratar bandas portuguesas, porque são tantas e tão boas… Aqui há uns anos, para escolher cinco bandas era complicado, porque não havia muita qualidade. Hoje em dia, para escolher vinte, é complicado, porque são muitas… Posso dizer que recebo propostas praticamente todos os dias… E há sempre pressão das bandas, de toda a gente… Não conheço nenhuma banda, em Portugal, que não gostasse de tocar em Paredes de Coura, portanto há uma pressão… As pessoas pensam quem pressionar mais é que vai a Paredes de Coura? Não, não é nada disso. Quer dizer que vais conhecendo pessoas, vais ouvindo projetos… e é muito difícil, porque, de repente, tens que escolher vinte em trezentas bandas e pelo meio vais vendo outras coisas que afinal faziam mais sentido… Quem me dera ter um palco que pudesse ter vinte bandas portuguesas por dia, porque conseguia preencher perfeitamente.

Já aconteceu convidares uma banda para o Sobe à Vila e achares que até fazia sentido no Yorn?

Aconteceu com os Máquina, o ano passado! O ano passado pus os Máquina no Sobe à Vila, falhou uma banda e pu-los no palco Yorn. Hoje tocariam perfeitamente até no palco principal, não é? Entretanto agigantaram-se… Tem acontecido algumas vezes, sim.

Vão dinamizar o palco do Jazz na Relva… Que conversas tens para oferecer?

Olha, fiz isso porque acho que as pessoas estão a precisar de conteúdo, estão a precisar de ouvir pessoas com experiência, pessoas inteligentes, pessoas com valores… O público de Paredes de Coura é muito específico. É um público sensível, melómano, com interesse pela cultura. Mas sinto, de uma forma geral, que falta ternura no mundo. Olhas para qualquer lado e são guerras, são conflitos. As pessoas andam azedas, buzinam no trânsito e chateiam-se facilmente… Espero que essas conversas contribuam para pôr as pessoas a pensar, para pôr as pessoas a ler, porque estamos na geração da informação banal, do TikTok, das fake news…

É tudo efémero e muito rápido…

Sim, é tudo muito rápido. Daí ter convidado o Valter Hugo Mãe, que é um amigo de longa data e é um escritor maravilhoso; o Alfredo Cunha, para apresentar o seu livro… Temos mais uma série de atividades, no fundo, para pôr as pessoas a pensar.