Ivo Canelas: “É muito raro ver as coisas que faço”

Ivo Canelas, de 49 anos, é o intérprete do monólogo de sucesso “Todas as Coisas Maravilhosas”, que reestreia esta segunda-feira no Mercado da Ribeira. Um espectáculo desafiante em que a saúde mental e o suicídio são temas de interacção com o público. Nesta entrevista ao NOVO, fala do sonho americano, do passado, dos planos que não faz e até do seu passatempo: a fotografia.

Vai reestrear “Todas as Coisas Maravilhosas”, a 3 de Janeiro, no Mercado da Ribeira, em Lisboa. É um desafio tremendo para um actor fazer um monólogo, ainda por cima sobre temas tão sensíveis como a saúde mental, a depressão, a ansiedade, o suicídio, o amor e a família?

Eu acho que ser actor, em geral, é um desafio. O monólogo, em particular, tem características que também dependem um bocadinho das características de cada actor, e pode ser mais ou menos desafiante. Há um lado no monólogo em que só te tens a ti para confiar. Não há mais ninguém que possa falhar a não ser tu, e acho isso interessante também. Sim, é um desafio, mas digo sempre que este monólogo é um falso monólogo, porque no seu melhor é praticamente um diálogo. A forma como o texto está escrito, e como eu tento partilhá-lo, é naquele sítio onde, se estivéssemos a fazer o solilóquio do ‘Ser ou não ser’ do Hamlet, o público perguntava “mas é ser ou não ser?”, e o Hamlet explicaria que “às vezes é ser, outras vezes é não ser, mas temos que ter cuidado, temos que ter atenção”. Isto deixa de ser um monólogo e passa a ser praticamente um diálogo ou momentaneamente um diálogo.

Chega a ser-lhe angustiante, dada a delicadeza dos temas, interagir com o público?

Para mim é catártico. Cada vez mais acredito que a arte tem esse poder de curar quem vê. Quem vê, talvez. Quem faz, tem. Quem faz, encontra uma forma catártica de explorar coisas boas, más, interessantes, desinteressantes, suas, experiências suas também. Acho que partilhá-las e vivê-las, através das personagens, é um fenómeno catártico de cura. Este material em particular, que aborda, como disse, depressão, suicídio, doenças mentais, solidão, etc… foi-me proposto há três anos, no momento em que a nossa sociedade já estava muito disponível para ouvir falar destes temas e para pensar alto em conjunto. É um texto com uma enorme falsa simplicidade, escrito pelo Duncan McMillan, mas em conjunto por alunos de escrita. Portanto, há uma humanidade que só poderia vir de várias pessoas ou que eu acharia difícil vir só de uma pessoa. Teria de ser uma pessoa absolutamente genial, porque aqui há coisas maravilhosas que eu nunca pensaria nelas como maravilhosas. Seria preciso outra pessoa, como tu, para as encontrar. Há aqui uma enorme humanidade e uma disponibilidade de abordar estes temas. Juntámos-lhe a pandemia em cima…

A pandemia ajudou ao espectáculo?

Fogo [exulta], não fazes ideia. Tivemos que reduzir a quantidade de pessoas. Tivemos que afastar as pessoas umas das outras e de mim, pelas questões de segurança e de higiene pública. Mas, por outro lado, pôs toda a gente com máscaras, o que criou um fenómeno muito interessante. Para mim era menos gratificante, porque não via as caras, mas para as pessoas, em particular mais para as do sexo masculino, protegidas pelas máscaras, iam a zonas emocionais onde eu diria que normalmente, sem máscaras, a maior parte das pessoas, e em particular os homens, não iriam e não vão. A máscara criou aquela coisa do “dá a um homem uma máscara, e ele vai dizer-te a verdade” escondido. Entras em contacto com mais facilidade com aquilo que sentes e a ideia das coisas seguras… Sabes aquela coisa: “Vamos ao teatro amanhã? Não, que seca, vou ficar em casa.” Acho que isso desapareceu com a pandemia. Aquela malta que preferia ficar a borregar no sofá de repente lembrou-se de que nada disto é garantido. Poder ir ao teatro hoje à noite, às 19h30, é uma coisa maravilhosa, porque não é garantido. E a pandemia trouxe-nos isso, trouxe a constatação dessa evidência, só que transversal ao mundo inteiro em simultâneo. Percebemos o quão frágil isto é e quão rapidamente desaparece. Um dia estás cá, outro dia não estás.

A tentação da morte está presente neste espectáculo?

Sim, sim, como uma saída. Isto é a história de um miúdo que começa a escrever uma lista de coisas maravilhosas para tentar convencer a mãe de que há razões para viver a seguir à sua primeira tentativa de suicídio. É a história do que acontece a este miúdo, do que acontece a esta mãe, a esta família e à lista. O texto propõe, sem lamechices e sem saídas cor-de-rosa… ou seja, isto não é um texto de auto-ajuda, porque muitas das ideias paradoxais que lança não encontram saídas fáceis. O que fala é sobre um exercício constante de repararmos no que nos rodeia, o exercício constante de nos pormos nos sapatos dos outros e vermos o que o outro estará a sentir. Um exercício constante de deslumbramento, de “uau, este sol, a esta hora”. Mas, por outro lado, a noção de que tudo isto junto pode não ser suficiente quando já te deixaste ir para lá da superfície da água e já te estás literalmente a afundar emocionalmente. Aí, já com imensa dificuldade, qualquer um de nós vai dizer “ai que café tão bom”. Aí já estás num estado depressivo e precisas de ajuda. Então o texto lança-se para outra zona, então temos que pedir ajuda, não de amigos ou de família. É a ajuda de profissionais. E mesmo aí, quem tenha atravessado essas zonas sabe que aí já só estás a esgatanhar para tentar voltar à superfície. São processos complicados de gerir. Há uma frase linda no texto que é: “Tenho um conselho para qualquer pessoa que tenha contemplado suicidar-se. ‘É muito simples, não faças isso.’” Tem este valor, o valor da vontade mais do que o valor da razão. Mais do que eu ter uma ideia genial que vai resolver o problema. Não tenho. E é isso que é fascinante neste texto. Tu ris-te quando tens vontade de chorar e choras quando tens vontade de rir, e num dia bom são as duas coisas ao mesmo tempo.

Este espectáculo tem algo de autobiográfico? Quem assiste pode ser levado a pensar isso?

Eu faço um enorme esforço para que isso aconteça, faço um enorme esforço para que a confusão entre mim e o personagem se esborre. Para que estejas num sítio e não estejas a perceber. “Quem é? Isto é ele?” Muitas vezes, muitas pessoas vêm dizer-me que esperam que fique tudo bem. O maior elogio que me podem dar é acreditarem durante duas horas que aquela é literalmente a minha história. É também. Mas é também a tua e a nossa em momentos. Aquilo está escrito de forma arquétipa, são coisas que todos reconhecemos. As primeiras namoradas, a universidade, o primeiro professor que marcou. As pessoas estão a ouvir aquilo e pensam “oi, mas isto sou eu”. Pois és, somos todos mais ou menos, especialmente neste momento da nossa sociedade em que somos os nossos entertainers, no sentido das redes sociais, onde consumimos e produzimos conteúdo constantemente, e auto-consumimos o nosso próprio conteúdo. É muito interessante jogar com essa confusão, porque as pessoas ficam num sítio de não saber o que é que é, e isso desarma-as ao ponto de, em última análise, perceberem que é sobre nós todos.

Recebe um feedback avassalador, quanto mais não seja porque deve haver pessoas a repetir a presença?

Sim, temos muita gente que vai muitas vezes. Acho que o recorde está em 12 vezes. O espectáculo é sempre pela forma como envolvemos as pessoas. Este tem zonas improvisadas, tudo muda e consoante o input de alguns membros da plateia, vai para zonas muito diferentes, todas elas válidas. O feedback é muito incrível, muito íntimo e tem um lado muito generoso das redes sociais e das mensagens directas. Algumas pessoas chegam a casa e partilham o que viram e o que sentem. Nesse sentido, é muito tocante a partilha, porque é muito íntima. Tive a sorte de, no início do projecto, ter o apoio da SOS Voz Amiga, um dos nossos parceiros. Deram-nos imensa informação sobre as partilhas que recebem e, curiosamente, algumas dessas coisas que partilharam servem também como ferramentas para conseguir receber algumas dessas mensagens, que são muito delicadas. Eu não sou psicólogo, não sou guru, nem tenho pretensão nenhuma de querer salvar ninguém, mas eles deram-me algumas ferramentas para receber essas mensagens e responder com a delicadeza necessária. E também para me proteger um bocadinho, porque a dada altura sou eu que fico avassalado com tanta história complicada.

Já lidou de perto com estes problemas? Não digo consigo, mas com pessoas do seu círculo mais próximo?

Sim, sim. É um tema que nos toca a todos e o que me surpreendeu foi a questão do “mas eu também, a minha não sei quê também, o meu primo não sei quê”. Achei muito interessante a capacidade de partilhar isso também.

Está também, actualmente, na série “Santiago”, de César Mourão, em que faz par com Lúcia Moniz num casamento que já viveu melhores dias…

“Santiago” é a história de uma família que decide fazer, junta, o caminho de Santiago, que é também um caminho muito curioso porque há ali um lado com uma vertente religiosa forte. Eu diria que é uma família nuclear clássica e até conservadora, em que todos, cada um à sua maneira – marido, mulher e duas filhas – estão num sítio de ruptura e o caminho servirá para uma viagem de autoconhecimento e, com sorte, de união. É um thriller sobre um assassinato ao longo do caminho de Santiago. Foi maravilhoso trabalhar com a Lúcia Moniz, a Leonor Vasconcelos e a Bárbara Branco neste núcleo duro… com condições de rodagem… com pouco tempo, infelizmente, tentámos ao máximo criar um núcleo familiar muito forte.

Já o vimos fazer de vilão, bom, mau, dócil, ingénuo. A pergunta é clichê, mas qual prefere?

Gosto de acreditar que consigo ser um actor flexível e ir a vários registos. Gosto de me esforçar nesse sentido, de procurar registos que ainda não tenha experimentado. Não sei se existe algum com que me identifique mais, honestamente. O que eu sinto ser curioso, com a idade, é que aquilo que achava que funcionava muito bem aos 20 anos, agora, aos quase 50, já me parece ser uma coisa diferente e acho que tento adaptar-me às várias fases da vida. Sabes pelo que é que tenho predilecção? Por material interessante e por equipas apaixonadas por aquilo que estão a fazer. Isso é o que me interessa neste meio, quando o material é desafiante e os teus colegas são superprofissionais, talentosos e mergulham naquilo com toda a força e passam ali três ou quatro meses a pensar naquele tema como se fosse a última coisa da tua vida.

Continua a ter vontade de fugir dois segundos antes de cada take?

F…-se, então não? Mas, felizmente, depois da acção há muitos takes nos quais sou muito feliz.

Começou a ser muito conhecido graças à série “O Fura-Vidas”. Olhando para trás, e com 49 anos, que impacto teve na sua carreira?

Na altura eu tinha saído do Conservatório há pouco tempo, e deu-me alguma exposição mais mediática. Já lá vão 20 mil anos e também não havia muitas outras coisas. O feedback que ainda hoje recebo na rua…

Ainda lhe chamam Joca na rua?

Muito. Aquilo bateu muito, teve muita graça e teve a ver com a nossa cultura. Era uma adaptação de uma série inglesa, mas houve ali um trabalho generoso do Miguel Guilherme também, de apropriarmos as portuguesices de bons malandros. Deu-me alguma exposição mediática e também algum carinho, porque havia ali uma inocência naquele personagem que ainda hoje ecoa nas pessoas.

“O Fura-vidas” foi uma espécie de série de culto que atingiu várias gerações. Tem essa ideia?

Ainda hoje há malta que me diz, sobretudo miúdos, que começou a ver no YouTube. Aquilo parece que está tudo borrado com os anos. É uma coisa estranha, a qualidade de imagem desapareceu toda. Mas a malta acha graça àquilo. Acho que é o nosso lado mais ingénuo, nós temos esta coisa no nosso povo: achamos graça a estes bons bandidos.

O ano de 2017 ficou marcado pela sua participação em duas séries norte-americanas, “Into the Badlands” e “Emerald City”. Como foram essas experiências?

Já fiz duzentas e tal audições, com self tapes para enviar. Dessas duzentas e tal fiquei em duas ou três. Essas duas séries são duas pequeníssimas participações. A “Emerald City”, se não me dissesses o nome, eu não me lembrava. Sou aquele gajo que aparece e diz “Do you want some coffee? Thanks”. E vai-se embora. Aceitei porque era com o Vincent D’Onofrio, que é um actorzaço, e não me arrependo nada. Vi-o a fazer coisas que validaram, que me ensinaram, coisas que nem sempre tens a confiança para levar até ao fim. Nós tínhamos uma cena muito simples, mas fisicamente apertada, num espaço apertado. Éramos quatro actores mais ele, e ele chegava e era quem falava, mas ocupávamos ali um bocadinho de espaço. E quando nós entrávamos pendurávamos todos os chapéus num bengaleiro e eu, não pensando bem, penduro o chapéu no bengaleiro mais alto – e ele é mais alto do que eu -, que obviamente serviria para ele pôr o chapéu dele. Quando eu percebo que ele vem aí, já é tarde, já não consigo resolver a situação. E pelo canto do olho vejo-o a fazer uma coisa que acho fantástica. Diria que outro actor chegaria lá, parava e dizia: “Desculpem lá, este chapéu não pode estar aqui, preciso deste espaço para pôr o meu chapéu.” Ele não. Chega, tira o meu chapéu, põe-o noutro sítio, coloca o chapéu dele num sítio onde acha que deve pôr, e a cena passa a ser, não sobre os chapéus, mas eu tenho que resolver aquelas questões técnicas durante a cena. E é algo em que eu acredito muito a trabalhar. Se retiramos os problemas todos das cenas, ficamos sem cenas. E isto é um problema muito simples, mas que te dá uma base de realidade muito grande; fazeres aquilo que trabalhaste ao mesmo tempo que estás a resolver estas questões. Foi uma óptima lição ver um protagonista a não se queixar dos secundários e a resolver ele o problema e validar mais a cena. Já “Into the Badlands” é uma fantasia erótica de violência kungfiana, e parece que foi escrita por um miúdo de 15 anos. Basicamente, eles conversam cinco minutos e ao sexto minuto começam à porrada em karaté. Adoro (risos). Tinha três boas cenas, mas eu tenho um azar nestas coisas… fiquei muito contente, o realizador ficou muito contente, foi giro e divertido. Voltei a Portugal, estava a filmar não sei o quê e eles ligam-me duas semanas depois a dizer: “Pá, gostámos imenso, mas ficou aqui uma ponta solta na tua personagem e vais ter que voltar para fazer mais um episódio.” Aquilo cai em datas nas quais não consigo ir, e então retiram as melhores cenas do episódio que tinha filmado. Fui lá espreitar uma vez e surjo a dizer “sim” com a espada e desapareço. Nem o meu nome lá está.

Mas isso permitiu-lhe perceber melhor como é o funcionamento da máquina de produção de televisão norte-americana?

Talvez não tenha sido o suficiente, mas percebi uma coisa engraçada: a nossa escala portuguesa, a nossa não indústria ou parca indústria, permite maior liberdade por um lado. Somos mais ágeis nas nossas produções, mais flexíveis, enquanto eles têm uma estrutura precisa e rigorosa. Isso tem vantagens enormes, mas, por outro lado, para fazeres o que quer que seja tens de falar com o realizador, com o escritor, tens de falar com muita gente. Obviamente que eu sou um peixe baixíssimo, que tem de pedir licença para fazer muitas coisas. Tenho a certeza que outros, de outra dimensão, não terão estas questões. Foi interessante ir e gostava de ter outras oportunidades um bocadinho maiores que esta.

Fazer cinema nos Estados Unidos seria o auge da sua carreira?

Não sei, sempre foi um sonho, sempre foi algo em que trabalhei muito nesse sentido, mas com os anos a passar tem sido uma montanha altamente difícil de escalar e quantos mais anos passam… Debato-me constantemente entre o sonho, o que estou a fazer para atingir esse sonho, e a probabilidade de atingir esse sonho. Não sei responder, tem sido uma montanha difícil de escalar. Vamos ver o que o futuro nos reserva.

Foi essa a intenção quando ganhou a Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e frequentou o The Lee Strasberg Theatre and Film Institute em Nova Iorque. Pensava ficar logo pelos Estados Unidos?

“Yes”. E que o Martin Scorcese iria apanhar-me numa esquina. Juro-te. Lembro-me que cheguei lá um mês antes do 11 de Setembro. São momentos muito marcantes: ir para lá, conseguir uma bolsa, tudo incrível. Lembro-me de numa noite estar ao telefone, estava sempre a gozar com a minha namorada, a dizer-lhe “vem aí o Al Pacino”. E um dia ele vinha mesmo. Vejo um rodinhas baixas, ele é mesmo baixinho. Aquilo tem um sentido mágico. É completamente basilar em quem sou esses anos em Nova Iorque e as coisas que vi. As pessoas que conheci marcaram-me muito.

Fazem-se filmes de grande qualidade na Europa, mas continua a ser difícil competir com o apelo de Hollywood e do cinema norte-americano…

A Europa vai-se tornando cada vez mais semelhante com os Estados Unidos do ponto de vista da indústria. Em França, em Espanha, e por aí fora, vais vendo uma indústria cada vez mais definida e mais poderosa. Com a questão do streaming, a ideia da Hollywood pode ter-se esbatido um pouco. O que parece estar a acontecer é que estes grandes streaming services vêm aos países tentar criar conteúdo local que depois seja distribuído no mundo inteiro.

“Glória”, no qual participou…

É um óptimo exemplo desse fenómeno. Quando éramos miúdos víamos séries espanholas e francesas, era normal isso. Somos daqueles povos que têm o privilégio da legenda, e por isso é que temos a disponibilidade para outras línguas. O streaming está a trazer-nos isso de volta. De repente, nós queremos ver uma série sobre Portugal que está no mundo inteiro. Tudo, de repente, torna-se global – não gosto da palavra universal. Sabes aquela piada da Miss Universo: “Então o planeta Terra ganha sempre?” (risos).

Na semana passada saiu a short list para o Óscar de Melhor Filme Internacional e o candidato nacional, “Alma Viva”, ficou de fora.Portugal tem mesmo um recorde negativo de 39 candidaturas sem conseguir uma nomeação. Há uma razão política ou de falta de promoção por trás deste registo?

Não sabia desse registo. Vi “Alma Viva” e adorei. É um filme incrível. Não percebo nada de futebol, mas não ganhámos mundial nenhum, pois não? Há uma série de povos que não ganharam uma série de coisas. Enquanto houver planeta para andar, a gente vai trilhando. Acho que um dia destes vamos ser surpreendidos cá dentro por um filme que nos vai deixar todos malucos. Um filme português, completamente português, tão português que nós nem acreditamos que algum estrangeiro possa ter interesse nele. E é exactamente por isso que o estrangeiro em geral terá interesse, porque cada vez mais a noção de nicho é o que interessa ao global. Porque esta coisa de estarmos todos ligados é o que permite ir descobrir o interesse na coisa mais insuspeita e de verberar pelo mundo fora. Acredito piamente que um dia destes estamos todos sentados no cinema qualquer a ver um filme e ficamos todos malucos com aquele filme, que não tem outro caminho que não seja fazer uma carreira Internacional. Acredito que é perfeitamente possível. Depois, se há trâmites políticos, já não domino. Este “Alma Viva”, por exemplo…

[interrompe Cristina Bernardo] Não acha que as plataformas serão uma mais-valia para isso?

Tenho a certeza, nem que seja pela quantidade de produção que nos obrigará a praticar, e a aumentar a probabilidade de acertar no material. Se fizeres 500 filmes ou cinco por ano, a probabilidade de teres um filme a rodar internacionalmente é muito maior se fizeres 500. Nós estamos com uma produção que ainda é baixa… acho pouco provável que alguém vá ver um filme no estrangeiro se cá não formos 9,5 milhões de pessoas ver aquele filme. Tens que ter este balanço, o mesmo boca a boca que põe o meu espectáculo a rodar é o mesmo boca a boca em que, de repente, eu digo a uma amiga minha, que mora na Suíça: “Vê este filme, é uma loucura.” Enquanto tivermos filmes a serem vistos por 150 mil pessoas… agora este “Alma Viva”, achei interessantíssimo, diverti-me, sofri. É um lado de Portugal muito nicho, com Trás-os-Montes e os “avecs”, incrivelmente bem representado, em que a Ana Padrão faz uma personagem absolutamente maravilhosa. Sempre gostei dela a fazer personagens mais bas fond, mas com a idade acho que ela também se está a aprimorar. Faz ali uma mulher simples, rude, fascinante. Adorei. E todo o filme tem coisas muito nossas, de bruxarias, maus olhados, conservadorismo, vidas fechadas, e ao mesmo tempo tem graça e tem pandemónio: tem uma cena de um funeral que é maravilhosa. Já sentes ali uma ginástica narrativa muito forte e de várias coisas a acontecerem ao mesmo tempo. Já disse a várias pessoas amigas estrangeiras para tentarem ver o filme.

Seguir o caminho da realização está nos seus planos?

Tenho muito poucos planos, pois têm saído tão gorados sempre que os faço. Tenho imenso prazer em trabalhar com actores e tenho imenso prazer a contar histórias como actor, gosto imenso de tirar fotografias e nunca dei o passo natural de fotografias em movimento. Gosto da imagem parada e aí controlo-a… vamos dizer assim. Talvez gostasse imenso de fazer como os irmãos Coen fazem: um realiza e o outro dirige. Talvez, mas não tenho a certeza absoluta.

Quem seria o seu irmão nessa dupla?

Não sei, nunca pensei nisso.

Tem diversificado muito a sua carreira pelo cinema, pelo teatro e pela televisão. Isso é uma estratégia ou é algo que acontece naturalmente?

Vais por onde o vento te leva um bocado. Eu tenho tido a sorte ao longo dos anos de poder dizer não. As coisas decidem-se mais nos nãos do que nos sins. Há uma série de coisas a que eu digo que não, porque o material não me diz nada. Teatro gosto de fazer, mas q.b., pois teatro cansa muito. A questão dos horários, a questão da repetição à mesma hora, nunca me dei muito bem com isso. Para fazer teatro tem que ser mesmo algo em que eu diga “uau!”, como esta peça, e mesmo esta peça tenho parado sempre de ano a ano. Faço 30 a 40 espectáculos e paro. A repetição é muito cansativa. Tem acontecido assim, tenho tido a sorte, ao longo dos anos, de me convidarem para coisas diferentes.

Os filmes e séries portuguesas de maior mediatização têm contado consigo no elenco. Sente-se um actor apreciado?

O feedback que tenho é muito simpático. Na nossa profissão é sempre estranho. O Nicolau Breyner dizia, com graça: “Em quantas profissões é que as pessoas vêm ver uma pessoa trabalhar?” Esta profissão tem este lado, de encontrarmos validação no visionamento dos outros. Não posso esperar que as pessoas vão ver as coisas para as validar. Tenho de validá-las quando estou a fazê-las, e é muito raro ver as coisas que faço. Da primeira vez que vi “O Fura-Vidas” fez-me uma confusão total. Hoje, passados muitos anos, não tenho grande interesse em ver, porque não me serve de grande coisa. Ou fico a achar que é terrível ou a achar que é excelente. Se o realizador me pedir, vou ver o monitor. Mas prefiro não ver, porque ganhas uma hiperconsciência que a mim não me interessa muito.

Há séries e filmes em que entrou e que nunca viu?

Há. Completas só vi uma. Vi o “Sul” porque aconteceu qualquer coisa, para mim, que ultrapassou a nossa fixação de actores com o nosso trabalho. Acho que a soma das partes de todos os sectores fez com que todos os nossos trabalhos fossem valorizados para zonas onde eu não estou habituado a reconhecer. Quando fui ver aquilo, fiquei apaixonado pelo personagem. Pela primeira vez fiquei maluco com um casal formado pela Margarida Vila-Nova e pelo Afonso Pimentel. O resto, a música, a realização, a fotografia, aquilo tudo fazia uma soma que esqueci-me até das cenas em que entrava. Estava distraído…

Estava a ver como espectador?

Como espectador total. Mas, voltando atrás, também não preciso que as pessoas vejam, aprendi isso com a minha família. Habituei-me a “se tu vires e gostares, vem-me dizer, pois não te vou perguntar”.

É apaixonado pela fotografia, e já expôs, inclusivamente, em Loures. Isso funciona como um escape ou como uma espécie de carreira paralela?

É como um exercício de observação. Começou para preencher uma espécie de solidão. Começou em Nova Iorque, comigo bastante desasado e sem rede social, com um telemóvel a focar-me no que estava para fora de mim. Isso interessou-me, desenvolvi isso e depois, por acidente, fiz uma exposição em Loures, graças à Cláudia Rodrigues que lá trabalha. Carreira… longe disso, mas gosto muito de fazer coisas para as quais não trabalhei. Gosto muito de desenhar, mas sou péssimo. Exactamente por não ter a pressão de fazer bem, e porque me diverte estar ali a fazer aquilo. [aponta para Cristina Bernardo] Tu estudaste e trabalhaste para isso, eu não. Mas sou sensível o suficiente para ver coisas que me interessam. E nas fotografias mal tiradas interessa-me muito o erro, e depois ir em cima da fotografia pintar e repintar – não é filtros. Gosto imenso do preto e branco e de contraluz. E gosto muito destes sítios onde ninguém repara em ti.

Pensa repetir a exposição?

Se me convidarem, com todo o prazer.