Gilmário Vemba: “Até hoje tenho medo de começar a traçar objectivos porque acho que vai começar a correr mal”

Popularizado pelo “Taskmaster” da RTP e pelo “Responder à Letra”, nas manhãs da Rádio Comercial, o angolano Gilmário Vemba arriscou-se “a ficar um mês a aparecer na CMTV” por matar uma espectadora de riso num dos espectáculos de humor com que percorre Portugal. Sobre o país natal, após ter actuado para José Eduardo dos Santos, diz que com João Lourenço “não há piadas, nem música, nem nada”. Mas, apesar de ter partilhado um vídeo do candidato da UNITA, “tem zero interesse em entrar na política”.

O que se aprende sobre Portugal quando se percorre o país de norte a sul a fazer espectáculos?
Principalmente, aprende-se que Portugal não é só Lisboa. Enquanto angolano, as oportunidades de viagem, sempre muito rápidas, acabavam por ser a Lisboa e, por vezes, ao Porto. E, sendo Angola um país que vive basicamente da importação, quando se vai à Europa, o primeiro objectivo é comprar coisas. Então, ficamos mais pelo shopping e por hotéis do que propriamente a explorar o país no seu todo. Fazer estes espectáculos dá uma oportunidade de conhecer Portugal como um todo e de perceber que existem vários sotaques, várias culturas, várias maneiras de ver a vida. Tem sido um acréscimo cultural muito forte.

Qual é a principal diferença entre uma plateia de Santa Comba Dão ou de Lamego e uma plateia de Lisboa?
Achei o pessoal de Santa Comba Dão superalegre e muito divertido. Mas, quando cheguei lá, disse que ia ser um espectáculo difícil porque nunca vi um sítio tão silencioso na minha vida.

É a terra de Salazar, ainda por cima…
Costumo fazer a piada que, desde que Salazar morreu, Santa Comba Dão está num velório e, ainda por cima, a palavra comba quer dizer velório em angolano. Às vezes uso isso como piada e digo que, em Santa Comba, os cães nem ladram. Falam baixinho para não assustarem ninguém, de tanto silêncio que há na cidade. Cheguei num sábado, às 14h00, e não via ninguém na rua. Pensei: “O espectáculo vai ser duro. As pessoas devem ser muito fechadas.” Mas surpreenderam-me pela positiva, pois riram-se muito. Vou notando cada vez mais que o pessoal de Lisboa tem a necessidade de querer analisar tudo antes de rir. De ver qual é a lógica que tem a piada e se não choca com nenhuma daquelas lutas que a gente vai fazendo todos os dias contra os preconceitos. Noutras partes do país, o pessoal está mais solto para rir e divertir-se, em vez de analisar a qualidade da piada.

E quase pedir licença para rir.
O politicamente correcto acaba por ser um assunto das grandes cidades, onde se concentra o maior nível de informação e a maior diversidade de pessoas. Então fica todo o mundo preocupado com o que vai dizer, para não ferir sensibilidades de ninguém, pois pode ser confundido o que é piada e o que é opinião sobre o assunto. Lisboa acaba por ser uma praça um bocado mais difícil de trabalhar, porque tenho mesmo de ter muito cuidado na hora de fazer uma piada seja com o que for – até com as minhas próprias raízes -, por temer ser mal interpretado.

Uma grande arma contra o racismo é desconstruí-lo através do humor ou até virá-lo contra pessoas racistas?
Hoje é mais tentar, através do humor, encontrar uma lógica de porque é que está errado a gente continuar a perpetuar esses preconceitos, e outros que vêm à pala, e mostrar que temos de abandonar essa ideia de superioridade ou inferioridade racial. E, às vezes, é complicado, pois estamos a ser o mais factuais possível para as pessoas não pensarem que existe um racismo inverso, de pretos contra brancos. A luta é encontrar o ponto em que todos demos conta de que existem preconceitos que persistem até hoje porque obedecem a uma determinada história. Temos uma herança e precisamos de abdicar de certos hábitos em relação à questão racial para podermos evoluir. Costumo até brincar que temos de nos entender antes que cheguem os aliens porque, aí, será mais uma raça, e ainda não estamos entendidos sobre este assunto e continuamos a lutar para definir quem é superior. Ainda é muito difícil admitir que existem lacunas que atrasaram um bocadinho o desenvolvimento da raça negra. Tudo o que aconteceu no passado criou preconceitos. Imagine alguém que durante muito tempo era considerado um simples objecto e depois passou a ter autorização para ser pessoa – claro que havia muita gente que continuava a olhar para essas pessoas como não sendo pessoas. Quando se fala em racismo estrutural, essa estrutura criou-se no passado de negação de oportunidades à pessoa de cor preta. Isso veio criar outro tipo de preconceito porque, se não tens oportunidade de trabalhar e de te auto-sustentar, como qualquer outra pessoa, vais entrar em modo de sobrevivência, o que vai gerar outro preconceito: o da pessoa que só rouba, que não gosta de trabalhar, que quer vida fácil, que vive de apoios, porque existe lá no passado uma série de leis e de comportamentos, do ponto de vista estrutural, do ponto de vista político, que impediram as pessoas de terem um crescimento orgânico, como todos os outros. Há que conseguir chegar a este nível de percepção para entender que o outro vem de uma base muito desfavorecida em relação à minha e que, provavelmente, isso vai-lhe trazer alguns hábitos. Depois, as pessoas dizem que há fulanos que vieram da mesma base, mas o que digo sempre é que não dá para pegar em excepções e transformar em generalidade. Sou um indivíduo que vem do bairro e conseguiu singrar na vida, um indivíduo que conseguiu, através da arte, ter algum sucesso.

Mas com muito trabalho…
Com muito. Mas, obviamente, com o trabalho e dedicação que tive poderia ser bem mais fácil. E se fosse uma coisa geral, além de mim devia ter mais dez amigos meus com o mesmo sucesso. Se só sai um Gilmário no meio de 20, então não é uma generalidade. É um longo caminho.

Já aconteceu alguém no público ficar ofendido por ser tratado por pula?
Graças a Deus, não. Nunca aconteceu.

Também não é claramente com essa intenção…
O pula [branco] não tem nenhum sentido pejorativo. É o oposto de bumbo [negro], para quem conheça. Por isso é que a ignorância é perigosa: se não sabemos o que significa e qual é a origem do termo, podemos chatear-nos ou então achar que é uma coisa muito fixe – e, por vezes, não é.

Tal como cota, que é uma expressão respeitosa, mas pode soar esquisito…
É um hábito cultural. Estamos sempre a chamar cota aos nossos mais velhos. Mas, às vezes, chego aqui ao estúdio, estou a conversar com o Pedro [Ribeiro] e, se lhe chamo “meu cota”, ele responde: “Estás a chamar-me cota? Achas que já sou assim tão velho?” Tenho de perceber que, aqui, a palavra cota ganhou outro significado. Quando estava a crescer em Luanda, para nós, a palavra nigger queria dizer rap. Dizíamos: “Aquele gajo é o meu nigger.” E quando se vai ver a origem da palavra, o significado e o peso que tem nos Estados Unidos, comecei a pensar: “Usei isso durante muito tempo e achava supernormal.” É preciso encontrar forma de perceber o uso ou não uso. Qual é a intenção das pessoas que estão a usar a expressão? Isso é muito importante.

O humor acaba por ser feito de muitas escolhas?
É uma faca de dois gumes, não é? Tenho como premissa que os meus espectáculos servem para entreter as pessoas que vão assistir. Se eu conseguir elaborar muito bem uma piada, e através dela passar uma informação positiva para todos na sala, isso é fixe. Digo sempre que quando estiver a fazer entrevistas como esta, posso aproveitar a oportunidade para dar uma opinião sobre algum assunto, mas, quando estou no espectáculo, aquelas pessoas estão ali, pagaram e foram com um objectivo, que é rir. E se eu me prendo num assunto que seja desconfortável para as pessoas e não tenha uma saída que vá ser brilhante, nem adianta usar.

Qual foi a coisa mais insólita que já lhe aconteceu num espectáculo ao vivo, aqui em Portugal ou lá em Angola?
Mais insólita? Não sei… Aqui aconteceu uma senhora que quase ia morrendo num espectáculo.

Meu Deus…
Foi num espectáculo em Braga. E até hoje falo dessa senhora, e com certeza que ela já leu numa entrevista. Ainda bem que ela não morreu, mas, se morresse… [risos] Não desejo a morte de ninguém, mas, se ela morresse, o que seria de sucesso para mim… Era um humorista que mata alguém de rir com uma piada. Foi um momento estranho. Houve quase 40 segundos de silêncio total na sala, porque a senhora estava mesmo a passar mal, e o marido correu para o palco, pegou na minha garrafa de água, ela bebeu e recuperou, até que começou a dizer: “Pára, pára!” E eu a perguntar: “Estás bem, minha cota? Está tudo bem?” Respondeu, “tudo bem, já passou”, continuámos e eu fiz a piada de “se morresses agora, eu ficava um mês a aparecer na CMTV”. [risos] “Humorista angolano mata de rir (literalmente).” E as pessoas iam dizer que ela tinha morrido feliz. Foi incrível.

O compromisso de precisar de ter piada à hora certa, num espectáculo ou aqui, na Rádio Comercial, é muito stressante?
É stressante. Mas, quando já temos um espectáculo montado e vamos sair em digressão, é tranquilo. Estou agora a fazer o “Temas”, e são 41 temas, e o espectáculo mais stressante é o de domingo [passado], que vou gravar. Tenho de estar sucinto quanto ao tema e garantir que não utilize nenhuma piada que já esteja gravada. O espectáculo naquela sala tem de ser completamente inédito. Quando vou a um sítio pela primeira vez, tenho esta abertura de brincar com os temas. Posso escolher a piada certa para o momento certo e tentar ir buscar a plateia com o assunto que será mais interessante para aquela zona. No domingo vai ser um stresse, pois achamos que as coisas que preparamos são engraçadas mas, na altura, estamos sozinhos. Tal como aqui na Comercial posso pensar, “com as ideias que eu tenho sobre os versos da música vai ser óptimo”, e, depois, sentir que ontem era engraçado e hoje não parece nada. Nunca queremos decepcionar o público. Queremos que as pessoas que confiaram em nós possam continuar a confiar na qualidade do nosso trabalho. Não podemos chegar ao ponto em que dizem “já não é a mesma coisa”. Claro que as coisas não se mantêm na mesma energia e na mesma intensidade a vida toda. Só o Fernando Mendes tem essa sorte, e mais ninguém à face da Terra… Também houve o Jô Soares, que ficou 20 anos com um programa… No próximo ano vou fazer 20 anos de carreira, mas com altos e baixos, esses vaivéns que fazem parte. Quando aceitei fazer o “Responder à Letra” foi por querer fazer parte deste programa. Não sabia se ia conseguir ter piada todas as vezes. O Vasco [Palmeirim] e o Pedro [Ribeiro] olharam para mim e disseram-me: “Puto, acho que tu consegues.” Foi mais a energia deles que me fez continuar, porque confesso que estava mesmo com medo. Pensei: “Algumas das músicas que vou trazer aqui são músicas com que eu já brinco há muito tempo. Tenho plena noção do que são. Agora, encontrar uma música diferente de segunda a sexta…”

Deve ser muito difícil.
E tenho de ser engraçado a descrevê-la. Pensei: “Isso vai ser duro, mas também não vou recuar. Vamos até ao dia em que a malta chegar e disser: “Vamos parar, para ver se nos centramos noutro projecto.” O que, às vezes, também é bom.

Aconteceu algum autor ou cantor das músicas reagir ao “Responder à Letra”?
Graças a Deus, até agora, só positivamente, até porque eu não entro no campo de questionar a qualidade do artista, do ponto de vista de composição ou da voz. Não estamos aqui para criticar a música, estamos aqui para responder à letra, ou seja, a tentar transformar a criatividade poética e o viajar de um artista – até eu o faço com as minhas piadas – e levar aquilo do ponto de vista literal, mesmo à letra. Quando o Anselmo Ralph diz “eu vou dar-te a Lua, eu vou dar-te o Sol”, eu digo: “OK, Anselmo, imagina se dás a Lua. Só há uma Lua, não existe outra.” É mais brincar com isso. Daí o artista achar que é engraçado e nunca se chatear com a nossa versão.

Alguém que tem 1,8 milhões de seguidores no Facebook pode ser considerado um milionário?
Não, não… [risos] Até porque boa parte dos meus seguidores – neste momento, 57% – são angolanos e a internet no meu país ainda é muito cara. As pessoas abrem o Instagram uma vez por mês, tal como o Facebook. Quando eu chegar a 50% de seguidores na Tuga, aí, se calhar, considero ir buscar um euro a cada um. A verdade é que na internet consegues seguidores mas, depois, tens de encontrar alguma coisa em que possas criar engajamento para que eles estejam lá e, se for possível, criar algum produto que seja bom e pelo qual as pessoas estejam dispostas a pagar um euro… Estou atrás da ideia de um produto qualquer pelo qual possa cobrar dois euros e meter no Instagram, algo tão bom que todos os meus seguidores cliquem lá. E aí, se calhar, chega o milhão.

Há pouco tempo escreveu um desabafo nas redes sociais: “Como é que eu faço para transferir o dinheiro que tu achas que eu tenho para a minha conta?” O sucesso implica sempre inveja alheia?
Às vezes, nem é inveja. Vêem-me a fazer 1001 espectáculos e fazem uns cálculos: “OK, imagina que ele ganhe uns 10 mil euros por cada um dos espectáculos…”

E faz muitos.
“Ele já fez 30 ou já fez 40, e isso já deve dar aí uns 400 mil euros.” Na cabeça das pessoas, cada venda de bilhetes vai directamente para o nosso bolso. Não há custos de produção, não há logística, não há trabalho de promoção, não há nada. Há espectáculos em que a gente ganha zero, mas temos de fazê-los, porque criámos esse compromisso: fazer os 41 temas e os 121 espectáculos, e ir a todo o Portugal. Aliás, se há alguma cidade a que ainda não fomos, por favor entre em contacto porque, nalguns sítios, ainda não sabemos com quem falar para poder fazer o espectáculo, e o meu objectivo é poder ir a todo este Portugal, conhecer todas as pessoas, porque quanto mais espectáculos faço, mais conteúdo tenho. Também tenho essa vantagem, que nem sempre é só ganho financeiro, mas também o ganho da experiência de poder descobrir um hábito novo, uma comida nova, uma música nova, e acrescentar nos próximos espectáculos. Acredito que o fecho dessa tour vai ser um espectáculo maravilhoso, pois estou a acumular, em todas as cidades onde vou, uma particularidade dessa cidade. E depois experimento noutra e continua a ser engraçado. Pode ser uma piada que foi feita em Elvas, mas toda vez que a conto em Lisboa ou noutro sítio qualquer acaba sempre por ter o mesmo efeito. Tenho piadas de Santa Comba, piadas do Entroncamento, piadas de Gaia, piadas do Porto. Estou a acumular experiências dessas cidades todas para, no grande fecho, fazer um resumo, e que seja de rir de uma ponta à outra do espectáculo.

A rádio e a televisão acabampor ser uma grande alavanca para conseguir esses espectáculos?
O “Taskmaster”, na RTP, e o “Responder à Letra”, na Rádio Comercial, criaram a possibilidade de fazer espectáculos em todas as partes de Portugal. Obviamente que também contribuíram outros espectáculos que fiz. Desde o “Stand Up Session”, que foi o meu primeiro espectáculo em Portugal para uma plateia tuga, os 20 anos de carreira do Fernando Rocha e os roasts na TVI acabaram por me levar ao “Taskmaster” e ao “Responder à Letra”, mas o salto, do ponto de vista de divulgação, de quem é hoje Gilmário Vemba – quando as pessoas pensaram “se calhar, era óptimo ir ver um espectáculo desse homem” – foi aqui na Rádio Comercial e também na RTP. Logo que começámos a gravar o “Taskmaster” pensei: “Isto aqui vai ser um sucesso. Este programa é incrível.”

Qual é a sensação de perceber que Gilmário Vemba, de repente, passou a ser uma marca que cria uma imagem na cabeça das pessoas?
É daquelas coisas que vão acontecendo, longe de serem programadas. Em primeiro lugar, nem sequer queria ser humorista. [risos] Fui parar ao teatro só porque fui acompanhar o meu irmão mais velho, para não ficar sozinho em casa, tudo acontecimentos superaleatórios. Até hoje tenho medo de começar a traçar objectivos porque acho que vai começar a correr mal. Estou muito nessa fase. O Ricardo Araújo Pereira tem um texto em que diz que o mundo conspira a favor dele. Acho que estou na mesma situação. Claro que trabalho, investigo, faço os textos, estou dedicado, mas nada disto que atingi estava na minha lista ou havia uma lógica de “vou por aqui”. Foi sempre numa lógica de “vamos lá ver o que vai dar”. E, de repente, nunca mais param de me convidar para fazer coisas. Ainda bem que sim, pois estou a manter as minhas crianças com alguma garantia. E o nome Vemba é uma coisa… Eu já respeitava o nome, por causa do meu avô, que foi meu mentor e com quem passei muito tempo. Era o pai do meu pai, Lázaro Vemba, e até dei o nome dele ao meu filho. Respeitava-o muito e passou-me valores que hoje, um bocadinho mais velho, penso: “Isto faz todo o sentido e é assim que uma pessoa deve posicionar-se na vida.” Levar este nome ainda mais longe e conseguir garantir que seja citado com respeito e admiração é supergratificante.

Esses valores não teriam propriamente a ver com o humor. O que aproveita desses valores para a actividade humorística?
O meu avô passou-me que o objectivo principal é ser uma boa pessoa, que consegue passar pelos outros sem os atropelar e sem ser agressivo. Tanto eu como os meus irmãos carregamos isso como premissa de vida. O primeiro objectivo é sermos uma boa pessoa na comunidade em que estamos, nos amigos e na família que temos. Claro que nem tudo sai bem. Somos seres humanos, falhamos, muitas vezes erramos, não temos o comportamento mais certo, mas o primeiro objectivo é sermos boas pessoas. Antes de meter o ganho que vou ter do ponto de vista profissional e financeiro, devo ver se não estarei a fazê-lo passando por cima das pessoas de forma propositada. Às vezes atropelamos pessoas, ao ritmo da vida. Algumas não querem que sejamos uma determinada coisa que, para nós, faz todo o sentido. Algumas querem que a gente fique só num sítio ou num segmento, enquanto artista. Se eu disser que já não quero ser humorista e que resolvi ser cantor, porque o meu coração e a minha mente assim dizem, todas as pessoas que gostam do Gilmário enquanto humorista vão ficar chateadas. Às vezes, acontece. O objectivo é ser uma boa pessoa dentro daquilo que é possível. Sempre, sempre, sempre.

Quando um filho diz aos pais “quero ser humorista”, existe a noção de que essa revelação não será muito bem recebida. No seu caso foi?
Não, até porque nunca tive essa conversa com os meus pais. Foi uma escalada natural e orgânica. Para os meus pais, era óptimo eu ter encontrado um hobby criativo que fosse preencher o meu tempo depois da escola. Para eles, era óptimo, pois não havia dinheiro para ATL e eu tinha arranjado o meu próprio ATL. [risos] Saía da escola, ia ao catequismo e para o teatro ao fim-de-semana. Pensavam: “Podia ir beber, podia ir fazer coisas menos boas, mas, pelo menos, o gajo vai para o teatro, ensaia, vai fazer espectáculos.” Aos meus pais, não chateava nada. Quando cheguei à idade laboral obrigatória – quando atinges os 20 anos, os pais já começam a olhar para ti e dizem, “ó puto, tens de começar a trazer algo para casa” -, já estava muito bem posicionado no mundo do humor. Quando criámos os Tuneza, grupo por onde passei e onde adquiri todas estas habilidades, tinha 17 anos. Entrei para o teatro aos 15 e aos 17 tive a ideia de fazer sketches humorísticos, e as pessoas começaram a pagar por isso. Não era para pagarem mas, já que estavam a pagar, percebemos que nem tínhamos de ir arranjar outro emprego. Quando cheguei aos 21 anos tinha rendimentos suficientes para me auto-sustentar. Aos 17 anos, os meus pais já não estavam preocupados em pagar a minha escola, porque eu já sustentava os meus estudos. Fui para a faculdade comigo a pagar e saí da casa dos meus pais aos 20. Vivia sozinho porque toda a minha actividade estava no centro de Luanda, e nós estávamos a viver fora. Era mais fácil: a escola era para aquele lado, as actividades todas também, e tive de ficar a viver sozinho muito cedo. A maior preocupação dos pais é “isso vai dar dinheiro?” ou “isso não é bem a tua formação”. Podes ser jornalista, alfaiate, o que tu quiseres, mas estão sempre preocupados com como te vais sustentar. E também com o bolso deles. Dizem: “Já tenho 18 anos disso, já meti aqui muito dinheiro. Quando é que começas a ganhar responsabilidade e a cuidares da tua vida?” Acho que é mais isso.

Hoje consegue rir-se de tudo o que escreveu nessa altura?
Muito. Até da minha cara. [risos] Escrevemos muitas coisas boas. Eu queria, neste momento da carreira, ter a cabeça que tinha na altura em que começámos. Era criatividade que não acabava mais. Conseguíamos fazer de uma linha um espectáculo de uma hora. De algo muito simples conseguíamos fazer um sketch que durou para a vida. O sketch que me tornou muito conhecido na televisão em Angola, com a personagem pela qual, até hoje, as pessoas continuam a tratar-me, que é o Ti Martins – que a cada ano que passa viraliza em algum canto do mundo -, eram só duas linhas. Cheguei à televisão, no momento de gravar, estava lá eu, puto, nos meus 22 anos, e o realizador disse que aquilo não dava nada. “Desculpa lá, mas precisamos de pelo menos quatro minutos. Não é só uma linha.” Mas eu meti o pé, os meus colegas apoiaram e fomos gravar aquilo. Estávamos supersincronizados: um começava uma frase, outro ia dando seguimento, acreditávamos na ideia, gravámos e correu bem.

Qual é a diferença entre fazer humor sozinho e fazer humor em grupo?
Em palco, e mesmo na televisão, agora, a cabeça é só minha. No passado éramos cinco cabeças e eu podia começar uma ideia e os outros iam acrescentando, ou vice-versa. Quando estás sozinho, consegues avançar mais rápido com uma ideia, mas ficas ali a pensar se não estarás a ser repetitivo. Mas, como eu queria muito seguir no stand-up, tinha de ser a solo, que é para fazer sentido.

A sua mãe trabalhava na copa da casa civil do Presidente da República. Chegou a conhecer José Eduardo dos Santos?
Sim, mas já como artista, como o Gilmário Vemba famoso.

Ele tinha sentido de humor?
Muito. Mas quem organizava os espectáculos estava sempre preocupado com o que íamos dizer. Diziam sempre: “Vocês tenham cuidado.” Mas houve eventos familiares, em que estávamos a dois metros de distância, e o Presidente era a pessoa na plateia que mais comentava as piadas. Isso era muito característico dele e ele gostava muito do nosso grupo. Várias vezes fizemos eventos para ele e para a família, e também eventos da Casa Civil e do MPLA. Fizemos vários. Ele ria-se e nós aproveitávamos. Quando se goza com uma figura que está ali, e que todo o mundo acha ingozável, pensam: “Estes não vão tocar no Presidente da República.” Era o nosso maior desafio, mas também a nossa maior piada. Cada vez que fazia aquilo estava sempre a imitá-lo, a ver como é que seria José Eduardo, que era sempre uma figura muito calma, com muito cuidado na fala, que quase nunca se alterava. Eu fazia a piada: “Zé Eduardo, acho que ninguém te consegue chatear. É irritante estar a discutir com uma pessoa que te responde nesse tom. Alguém está aos gritos de ‘não acredito nisso!’ e tu [imita José Eduardo dos Santos, num tom de voz baixo e pausado], ‘calma, é preciso olhar as coisas de vários ângulos’.” E como é que seria o José Eduardo dos Santos a ralhar à Isabel dos Santos, porque a filha fazia alguma coisa de que ele não gostava? [volta a imitar o antigo Presidente de Angola] “Isabel, alguém tomou o meu iogurte. Deixei na prateleira de baixo. Não gosto dessas porcarias. Da próxima vão levar galhetas.” Isso era muito engraçado porque era no flow do José Eduardo dos Santos, mas num contexto completamente diferenciado. Todas as vezes que o ouvíamos falar eram sempre num fórum muito oficial, nos discursos à nação e em altura de campanha eleitoral. Era esse o único registo que tínhamos dele, e poder pegar nesse registo de estadista e levar para um ambiente familiar em que está a ralhar ao filho, a dizer [novamente a imitar José Eduardo dos Santos] “não joga à bola na sala, vais partir-me a televisão”, era engraçado, porque era o mesmo tipo de melodia que ele tinha nos discursos, e nós levávamos isso para a brincadeira.

E qual era o limite ao vosso humor num país a sair da guerra civil e governado pelo mesmo partido desde sempre?
Para nós, só havia o MPLA. Quem cresce em Luanda e mama tudo o que passa na televisão e na rádio, muito fechada naquele discurso único, tudo o que ouve na televisão e rádio ou lê no jornal é a favor daquele partido. Não estás a ver outros pontos de vista. Mais do que um limite, era uma ideia de “isto é o que é” e de “isto é o certo”. Quem cresceu em Luanda teve sempre na cabeça a ideia de que a guerra só foi feita pela UNITA. Claro que, hoje, com um bocadinho mais de idade e de conhecimento, o olhar é outro, mas, naquela altura… Aos 18 anos, já andava de Cabinda ao Cunene, do mar ao leste, a fazer eventos com mensagens de paz e de reconstrução do país e a dizer que a guerra tinha acabado. Estávamos no palco a dizer coisas em que acreditávamos: a guerra acabou e agora vamos ser um país de liberdade. Viu-se muito processo de reconstrução e foi bom ir a alguns sítios, passar dois anos depois e notar que houve mudança, que havia uma estrada nova e já não havia tantos vestígios de tiros. Mas foi triste começar a ver que estávamos a andar para trás. Sentirmos que passaram dez anos e voltámos ao ponto de partida cada vez vai fazendo mais confusão na cabeça de um jovem que está a ficar velho. Até 2010 estávamos com muito dinheiro. Foi o pico da nossa economia, com o mundo todo a decair, por causa da crise de 2008, e nós a “tchilar” [grita “Money!”] e felizes com aquela sensação de crescimento e desenvolvimento. Em 2013, quando o dinheiro começa a desaparecer e há evidências de que as coisas estão paradas, e algumas até estão a recuar, comecei a ficar preocupado. Começámos a olhar para o lado e a pensar que precisávamos de um outro approach.

Muito recentemente partilhou um vídeo com o discurso de Alberto da Costa Júnior [candidato presidencial da UNITA] em que ele diz que o resultado das eleições angolanas não é verdadeiro. Hesitou em fazer essa partilha?
Muito. Quando se tem o meu alcance, tem de se ter muito cuidado com aquilo que se diz. É preciso pensar de cabeça fria. Eu sei o número de pessoas que alcanço, sei o peso da opinião que tenho, principalmente sobre assuntos sensíveis. Então, é preciso ter sempre muita cautela. Foi preciso olhar de trás para a frente, pegar no máximo de evidências que consegui pegar na altura, ouvir vários analistas, ver várias reportagens e várias sondagens, ver várias coisas, para poder chegar aos dois [candidatos] e dizer que precisamos de uma demonstração de verdade. Se não é como está a ser dito, precisamos de uma prova de que realmente não foi. E essa prova nunca apareceu. Temos esse partido anos e anos a dizer que há fraude e, pela primeira vez, esse partido não diz que há fraude, mas diz literalmente que o outro partido não ganhou. Isto é mais grave, porque uma coisa é o partido dizer que não ganhámos, mas não temos o número de deputados que supostamente devíamos ter. Mas a coragem de chegar à frente e dizer “eles não ganharam” é uma coisa pesada. Andei a ver o projecto do Luaty Beirão, que estava a fazer uma sondagem, e a acompanhar tudo aquilo. Havia outras sondagens feitas por outras pessoas, havia o feedback de pessoas nas redes sociais e em várias plataformas, e tudo aquilo dava para um lado. Já não dá para confiar na imprensa tradicional e acho que valeu a pena e que temos de continuar a forçar um avanço da nossa democracia. É uma democracia muito jovem que tem muito por onde crescer. As pessoas precisam de entender e de se desligar das coisas. Sei que é difícil as pessoas desligarem-se do hábito do poder. Sei que há muita gente que tem toda uma vida no poder e que não está, obviamente, a imaginar a possibilidade de passar para a oposição, mas já vimos isso acontecer noutros países. Está na hora de forçarmos isso, nem que seja para que quem está no poder sinta a responsabilidade de fazer pelo povo. Foi uma grande demonstração de descontentamento da população, a maior a que assistimos. Vamos esperar que nestes cinco anos haja mudanças, haja projectos claros, nem que seja a demonstração de um caminho. Às vezes falta-nos isso em quase todos os partidos que concorrem quando se analisa as suas directrizes e se vê quais são os seus planos reais para a saúde, para a educação, para a economia, conforme a gente vai vendo nas outras democracias. Hoje em dia, o mundo é um Big Brother. Sabes facilmente o que se passa até na Rússia, que é um país fechado, até na China, que é uma ditadura e sempre foi fechada para o mundo. Hoje, nós sabemos o que se passa lá dentro. Sabemos que há manifestações, que há protestos, coisas que antigamente não conseguíamos saber mas que, hoje, já se sabe. Queremos estes debates, queremos que os nossos partidos, em vez de só estarem a dizer “esse não faz” ou “esse não sei quê”, se sentem e vejam o que cada um tem para oferecer à população a nível da saúde, da educação, da economia, da segurança e da estabilidade social, o que têm a apresentar enquanto projecto. Acho que isso é importante.

O Presidente da Ucrânia, Volodomir Zelenski, era um comediante que criou um partido com o mesmo nome do seu programa televisivo, e, aqui em Portugal, muitas vezes dizem que Ricardo Araújo Pereiraé o verdadeiro líder da oposição. Tem alguma ambição de um dia se submeter ao voto dos angolanos?
Dizer nunca é uma coisa complicada, porque não sabemos o dia de amanhã. Não sabemos o que nos vai acontecer, mas o Gilmário de hoje tem zero interesse em entrar na política. Estou bem na posição de uma pessoa que continua a ser artista, que é uma coisa que sei fazer bem. Não sei fazer política, mas sinto cada vez mais que em Angola, principalmente, precisa de se mudar o discurso de que a política é feita para os políticos. A política é feita para as pessoas que estão na pólis. Todos os que vivem na pólis têm o direito de participar e de garantir que os seus representantes façam exactamente aquilo que são as suas aspirações. Isso é muito importante para mim mas, em Angola, ainda temos muito medo de falar em política. Aliás, temos até pessoas que estudaram política, que são professores e senhores, e que vêm a público com a mensagem “mano, tu és humorista, fica no teu mundo e não te metas na política”. Eu sou humorista, mas vivo numa cidade. Pago água, pago luz, preciso de segurança. Não existe um bloqueio a poder participar na vida política do país, como cidadão, para dizer o que acho. Quando a gente atinge a idade de ser militar não é só para morrer pelo país ou para ir defender o país a dar tiros. A idade militar é também a idade de voto e da maioridade, que nos dá abertura para começarmos a participar e discutir e decidir aquilo que queremos para nós. Eu vou andar na mesma estrada, vou viver no mesmo país, vou ter conta nos bancos que estão no país, vou fazer compras nos mercados. Não faz nenhum sentido não estar a dizer o que acho, não estar a participar e não estar a respeitar e a valorizar o meu voto? Enquanto cidadão, se eu não exigir ouvir de quem me vai governar nos próximos anos o que tem para mim, e se ele não tiver a capacidade de ouvir o que eu quero para mim nos próximos cinco anos, isso não faz sentido. Eu sou artista e quero ouvir qual é a visão para a cultura, o que me oferece enquanto artista. Vou ter salas de espectáculos? Nas últimas eleições, que razão é que eu, enquanto artista, teria para votar num partido que nos últimos 20 anos não me criou uma sala nova de espectáculos, não criou um mecanismo novo para o crescimento da minha arte, não me criou oportunidades, não me criou uma linha de financiamento, não criou nada para que eu possa crescer dentro daquilo que é o meu ganha-pão. Quais são as minhas motivações? O que é que me ofereceste? Não me ofereceste nada, mas queres o meu voto? Queres que eu me cale? Que não diga nada? Vou morrer à fome?

No caso de João Lourenço, nem sequer há vontade de ouvir piadas, portanto.
Nem piadas, nem música, nem nada, porque não existe um projecto ou uma linha traçada para a cultura. Nos últimos 20 anos, além de actividades esporádicas e de grandes eventos, não existe um espaço onde a pessoa possa ser artista, onde possa desenvolver um projecto do ponto de vista criativo, um sítio a que possa levar esse projecto e saber que vai sair de lá com um feedback, positivo ou negativo, mas em que existam essas linhas a nível da cultura. Faço parte do segmento da cultura e penso no que há para mim enquanto artista. A participação de todos é nesse âmbito: o professor e o pai que tem o filho a estudar vão querer saber o que há no âmbito da educação, O pai também vai querer saber o que há a nível da saúde porque, quando os filhos ficam doentes, quer saber com o que pode contar. O bancário quer saber as linhas que serão seguidas a nível da economia, o que aquele partido está a pensar fazer. Todos nós temos mesmo é de participar, dando a nossa opinião, participando em referendos, e só assim é que a gente vai crescer. A ideia de “deixa lá eles falarem” não é assim. Num país de 30 milhões, só 220 pessoas [deputados eleitos para a Assembleia Nacional de Angola] terem a palavra não vai dar certo.