“Galamba deve ter a oportunidade de mostrar que não está fragilizado”
Sem “pressa” de subir ao patamar seguinte – ser membro de um governo –, Miguel Costa Matos mantém o foco no que quer fazer avançar no Parlamento como secretário-geral da Juventude Socialista (JS). Transportes públicos gratuitos até aos 23 anos são uma das principais bandeiras e a crise na habitação o maior desafio. O ex-assessor económico de António Costa reconhece que houve casos “lamentáveis” no Governo, neste ano e meio, mas garante que “a árvore tem tronco e raízes sólidas”.
A cumprir o segundo e último mandato como secretário-geral da JS, Miguel Costa Matos faz um balanço da sessão legislativa. Reconhece que os casos no Governo distraem e avisa que não se pode perder a “oportunidade única de poder fazer as reformas de que o país precisa”.
Esta foi uma sessão legislativa marcada pela instabilidade no Governo. O trabalho parlamentar foi condicionado por isso?
Tivemos uma sessão legislativa de facto atípica. Porque foi longa, iniciou se em Março do ano passado e está a acabar agora. Atípica porque, pela primeira vez em muito tempo, tivemos uma guerra aqui às portas da Europa e isso implicou mais uma crise económica a que tivemos que responder, com grande impacto nos preços da energia, com grande impacto no preço dos alimentos e que tudo isso também trouxe, concomitantemente o aumento das taxas de juro e o aumento do custo do crédito habitação. Houve certamente neste período, entre Dezembro do ano passado e agora Março, Abril deste ano, um conjunto de acontecimentos lamentáveis e que, naturalmente, no momento podem servir para distrair, distrair os portugueses, distrair-nos a todos nós daquilo que são os problemas. Mas no essencial, as pessoas chegam ao final do mês e têm as dificuldades que têm em pagar as suas contas. Aquilo que temos procurado fazer, com muito foco, é podermos aumentar os rendimentos, responder aos preços da energia e dos alimentos e superar esta crise da habitação. Não podemos dizer que a crise está superada, mas houve respostas muito concretas. Temos hoje uma inflação já mais baixa; com o IVA Zero conseguimos pôr um travão a sério no preço dos alimentos; com mecanismo ibérico e outros, conseguiu-se também pôr os preços da eletricidade a contribuir muito para a redução da inflação; na habitação é mais difícil, pois as taxas de juro são o que e o impacto económico financeiro é grande, mas está a ser implementado o subsídio de renda e as renegociações dos créditos, eliminando os obstáculos que a banca estava a criar. Eu diria que sim. Teve um impacto sobre todos nós naqueles meses, mas o foco em conseguir arranjar respostas aos problemas manteve se e acho que hoje as pessoas agradecem essas respostas. Os problemas não desapareceram, o trabalho para continuar.
Mas a sucessão de casos e casinhos preocupa-o, num governo de maioria absoluta com ano e meio de legislatura?
As sondagens valem o que valem, mas se há uma coisa que nos dizem muito claramente é que, na sequência destas várias crises, os portugueses não perderam confiança no PS e no Governo. Apesar de tudo, continuam a encarar o PS como o melhor partido para liderar o nosso país. E isso deve-se a um historial de conseguirmos cumprir promessas e melhorar a vida das pessoas. Não é como dizia o Luís Montenegro, que o país está melhor, mas as pessoas não; as pessoas, de facto, também estão melhor. Não podemos dar-nos por satisfeitos. Os salários têm de subir mais, mas as pessoas estão a sentir na sua vida esse impacto. O Presidente da República falou na árvore [e nos ramos mortos que a atingem]. A verdade é que esta árvore tem um tronco e umas raízes bem fortes e bem sólidas.
Mas não o preocupa esta turbulência?
Olhamos para esta sucessão de crises e a pergunta que lhe devolvo é: o que faríamos diferente? Estaria preocupado se tivéssemos um governo de maioria absoluta que não assumisse as suas responsabilidades, um governo que não procurasse esclarecer os problemas quando eles surgem; ficava preocupado se vivêssemos numa espécie de república das bananas que não recuperava o computador que um adjunto, que tinha sido exonerado, decidiu levar para casa no dia em que foi demitido. Isso, sim, seriam questões preocupantes. O PS teve essa abertura de chamar toda a gente ao Parlamento para as coisas serem amplamente escrutinadas. A maioria apenas pode ser de confiança se for transparente e não tiver nada a esconder. Isso não significa que podemos dar-nos por satisfeitos apenas a gerir a crise do presente. Temos de conseguir imprimir um rumo reformista ao país. Temos de conseguir arranjar novas respostas.
A comissão parlamentar de inquérito à TAP ocupou grande parte do último ano no Parlamento. Concorda com o ministro da Cultura quando afirma que os trabalhos decorreram em formato de reality show?
Fazer uma comissão de inquérito é uma tarefa difícil. O estilo e registo leva-nos a tentar fazer o tipo de perguntas e respostas que apela mais à emoção. E, às vezes, é fácil perdermos o foco. Tenho muito respeito pelo trabalho que foi feito. Descobrimos coisas importantes que, embora não estivessem escondidas, não eram do conhecimento público. E, é natural, os políticos vão onde está a atenção mediática. É preciso respeitarmos muito aquilo que foi a função de escrutínio, mas não devemos deixar de ser críticos e pensar como podemos melhorar para que as comissões possam ser mais úteis no futuro. Perguntar “quem é que falou com quem”, “quando e com que ordem”, “esconderam-se na casa de banho ou no corredor”, “há gravações ou não há”, esse tipo de pequeno pormenor, acho que interessará muito menos aos portugueses do que o que correu bem e mal na gestão da TAP. E isso, infelizmente, foi pouco evidenciado nesta CPI.
Mas o ministro da Cultura fez bem em comparar os deputados a procuradores de um filme de série B?
O ministro da Cultura deu a sua opinião. Naturalmente, a função de uma comissão de inquérito é procurar escrutinar a verdade, tal como um procurador. Quando aquele meio favorece um contexto mais mediático de puxar pela sensação, pela emoção, de facto, às vezes, parece uma série de cinema. Mas o que parece não é. Os deputados estiveram muitas horas a escrutinar este trabalho e merecem ser respeitados. Não é fácil fazer as perguntas certas. Às vezes, é muito mais difícil do que ter as respostas certas. Cabe-me reconhecer o trabalho dos deputados da comissão de inquérito e, em conjunto, pensar como é que podemos assegurar que as CPI melhor servem, não a atenção mediática, mas o bem do país.
A oposição acusou que o relatório preliminar da CPI é um frete que o PS fez ao Governo. Compreendeu as críticas?
Não estou minimamente preocupado com essas críticas. Quaisquer que fossem as conclusões do relatório, a oposição iria sempre dizer que era um frete ao PS. Inicialmente, não era claro que iria ser o PS a escrever o relatório. Alguns deputados quiseram que o relatório falasse de incompetência, que fizesse um juízo político sobre o que aconteceu no Ministério das Infra-Estruturas; isso é tornar um relatório que deve ser factual numa arma de arremesso política.
Sobre o episódio do Ministério das Infraestruturas e que o primeiro-ministro não tivesse aceitado o pedido de demissão de João Galamba?
Não, não me surpreendeu, na medida em que o adjunto Frederico Pinheiro terá, alegadamente, sonegado informação. Quando admitiu ter essa informação, demorou a entregá-la e o ministro decidiu demiti-lo. Isso não deveria ser, em si, algo do outro mundo. Ele reagiu da maneira como alegadamente reagiu. Perante isso, mandaram ir buscar o computador. Não vejo o que o ministro podia ter feito diferente. Não demitia o Frederico Pinheiro? Não ia buscar o computador? O ministro agiu adequadamente e, perante alguém que age adequadamente, não vejo motivos para haver demissão.
Por tudo o que aconteceu, e tendo até apresentado a demissão, não acha que é um ministro fragilizado?
Isso dependerá dele próprio, da condução dos trabalhos que fizer e de todos nós. Temos de pensar que tipo de democracia queremos; queremos uma democracia em que, à primeira dificuldade, um ministro, apesar de ter feito tudo bem, porque um adjunto dele andou alegadamente em altercações físicas no gabinete, merece ser demitido? Pode até fazer um excelente trabalho, mas é logo mandado embora? Se aceitarmos que um ministro saia fragilizado de um cenário destes, então estamos a contribuir não só para o enfraquecimento de João Galamba como para o enfraquecimento da nossa própria democracia. Acho que se deve dar uma oportunidade a João Galamba para poder demonstrar a qualidade do trabalho que fez. Como secretário de Estado da Energia, foi capaz de expandir muito a produção de energia renovável no nosso país; o sector reconhece-o por isso. Devemos agora dar-lhe a oportunidade de demonstrar que não está fragilizado.
O Mais Habitação foi outro dos temas desta sessão.A oposição tem tido muito pouca fé nas medidas e o Presidente da República comparou-o a uma “lei-cartaz”. O programa é aquilo que devia ser?
A única resposta que conhecemos em toda a Europa para o problema de subida dos preços é a habitação pública. Sabendo nós que o caminho estrutural é esse, o que este programa faz é abrir as comportas e dizer “vamos dar tudo o que for preciso para que este problema seja resolvido”. Um desafio grande é responder à habitação jovem. Somos o país da União Europeia onde mais tarde se sai da casa dos pais. Se olharmos apenas para a zona de Lisboa, 10% das casas são para arrendar, 90% para comprar. No país inteiro, em termos das transacções a nível anual, 70% são de compra, 30% de arrendamento. Por isso, apesar de apoiarmos o arrendamento, a verdade é que também ainda não é uma solução com muita oferta. Será necessário assegurar que no alojamento estudantil e na compra da primeira habitação existam novos apoios e que podemos ir um bocadinho mais além em tudo aquilo que o programa Mais Habitação está a preconizar.
Uma das marcas desta sessão legislativa foi o confronto entre o presidente da Assembleia da República (AR) e o Chega. Faz sentido?
Quando se passam certos limites, é importante denunciarmos porque, se não o fizermos, estamos aceitar que aquele discurso é normal e aceitável. Estamos a falar de um discurso que viola os direitos humanos e de generalizações que atribuem a uma etnia a responsabilidade pelos crimes de um único indivíduo, por exemplo. Vimos aquilo que aconteceu na sessão solene com o Presidente Lula. O PSD e a Iniciativa Liberal não concordaram com a realização desta sessão solene no dia em que foi, mas estiveram lá, de maneira respeitosa. Não estiveram a empunhar cartazes. Podemos discordar, mas não devemos permitir que o plenário da Assembleia se torne uma espécie de tasca ou uma espécie de sítio onde as ideias não tenham a primazia.
Como se traça a linha entre o que é aceitável e o que não é?
Percebo que a linha possa ser sempre subjectiva, mas há uma diferença entre os apartes, muitas vezes violentos, algumas vezes, até ordinários, e empunhar um cartaz, mandar bocas racistas ou mesmo proferir discursos que podem ser de ódio. Por algum motivo está no nosso regimento que esses discursos não podem ser proferidos e, por isso mesmo, merecem uma chamada de atenção. Até agora, a nenhum deputado foi retirada a palavra. Mas está nas funções do presidente da AR e da mesa – e bem – poder chamar a atenção para que esse uso da palavra está em flagrante contradição com o regimento. Há sempre um momento em que temos de dizer chega – ironicamente, esta é a palavra.
Acredita que há condições para levar a legislatura até ao fim, sem mais obstáculos?
Os obstáculos surgem sempre em qualquer governo, crises, necessidade de mudar pessoas, mudar políticas, porque as circunstâncias mudam ou porque as decisões que tomámos não estão a funcionar. Por muito impopular que seja um governo, por muito que possa suceder alguma situação, o que pode ferir a legitimidade democrática que os portugueses deram ao Governo? Essa legitimidade permanece. Foi dada uma maioria absoluta ao PS há um ano e meio. É um sinal muito claro. Há muitos anos que não tínhamos uma maioria absoluta. Naturalmente, temos de fazer por merecê-la, mas choca-me esta normalização do discurso da dissolução. Seria preciso alguma coisa realmente grave para que esse sinal que os portugueses deram pudesse ser posto em causa. Temos de respeitar esse ciclo da democracia. Se houver alguma situação que ponha em causa a normalidade das instituições, então, nessa altura, teremos de reflectir.
Uma das situações que poderiam pôr em causa a normalidade seria a saída do primeiro-ministro para um cargo internacional?
Só o primeiro-ministro pode responder a isso, e já o fez várias vezes. É claro que podia ter as funções que quisesse. Tem prestígio e reconhecimento para lá da nossa família política, mas parece-me que há uma coisa muito clara: António Costa tem uma missão para cumprir até Outubro de 2026 e não vai desistir dela. Tem uma visão muito clara para o país, uma visão de esquerda, mas pragmática, para o crescimento. Não podemos perder esta oportunidade única que temos de poder fazer as reformas de que o país precisa para crescer mais e para dar melhores condições de vida às pessoas.
O que não tem impedido que se fale na sucessão no PS.
O melhor elogio que podemos ter é as pessoas interessarem-se por isso, porque revela que consideram que o próximo líder do partido pode desempenhar um papel importante no nosso país, e acho que sim. E revela que, de facto, consideram que há vários bons quadros no PS.
Acompanhou o entusiasmo com que a bancada recebeu Pedro Nuno Santos?
Para mim, é um entusiasmo poder privar mais proximamente com alguém que é um antigo líder da JS, um grande quadro do presente e do futuro do PS. É muito positivo que as pessoas se entretenham a falar disso. Agora, tenho uma certeza: há uma grande unidade em torno de António Costa e do nosso projecto de governação.
Que outras propostastem a JS para estancaro fenómeno da emigraçãode talento jovem?
É muito importante a questão dos salários. Temos de assegurar que o IRS Jovem tenha uma aplicação mais concreta, mais material na vida da maioria dos jovens. Encaramos como uma grande prioridade a resposta às alterações climáticas. Achamos que os transportes devem poder ser gratuitos para os jovens até aos 23 anos. Essa é uma grande reivindicação que temos vindo a adoptar. Na área da transição digital é preciso darmos uma nova geração de políticas de empreendedorismo, conseguirmos captar as grandes multinacionais, mas também pequenas startups para se fixarem em Portugal e desenvolverem cá os seus produtos.
A JS defende a legalização da canábis e da prostituição, temas considerados fracturantes. Quando espera ver esses temas novamente debatidos na AR?
Esperemos que para breve. A nossa expectativa é que na próxima sessão legislativa possa haver avanços nesse sentido. A legalização da canábis na Alemanha é um sinal claro de que, na UE, já não faz sentido estarmos agarrados a querermos proibir um produto que está disponível a todos e que faz sentido assegurar que pode ser consumido com segurança.
Está disponível para funções governativas?
Tudo depende daquilo que forem as funções e as condições. Depende também de haver um convite. Fui eleito deputado, tenho tido a felicidade de poder liderar um conjunto de dossiês legislativos, tenho uma equipa de dez deputados jovens e, portanto,o foco não está nos cargos, está na capacidade de trabalho. Essa oportunidade ficará para quando ela vier, sem qualquer tipo de pressa ou preocupação.
Entrevista originalmente publicada na edição do NOVO de 22 de julho