Uma “reflexão global” sobre a construção do Estado de Direito em Portugal depois do 25 de Abril é o objetivo do congresso “50 anos de Direito em Portugal: anatomia de um sistema em transição”, que irá decorrer na Faculdade de Direito da Universidade Lisboa (FDUL) entre 19 e 21 de março, evento integrado nas comemorações oficiais dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, de 1974. Serão mais de sessenta intervenções de juristas, especialistas no foro, no ensino, na política e em diversos cargos institucionais, percorrendo os diferentes ramos do Direito (ver abaixo Programa do congresso).
Concebido por Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático jubilado da FDUL e presidente do Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal (IDEFF), da FDUL, o congresso pretende “traçar uma ampla visão do Direito em ação” e refletir, não apenas sobre as profundas mudanças que se construíram ao longo de meio século de processo democrático, mas também sobre “as que continuam a exigir-se 50 anos após a revolução de Abril”, afirma o professor (ver abaixo nota de Apresentação do congresso).
“Os bloqueios e perversões que existem hoje em algumas áreas do Direito, nomeadamente no Penal, não nos devem distrair da profunda transformação verificada em todos os ramos do Direito nos últimos 50 anos e que tornaram Portugal um país mais livre, com mais direitos e um Estado mais moderno”, acrescenta Eduardo Paz Ferreira. E observa: “O país chegou a 1974 com um Direito atrasadíssimo, conservadoríssimo, que suprimia liberdades e direitos básicos, nomeadamente às mulheres, e que do ponto de vista económico era avesso à concorrência e assentava num sistema corporativo que bloqueava o desenvolvimento.”
Integrado nas comemorações oficiais dos 50 anos da revolução, o congresso “Da Ditadura à Democracia – 50 anos de evolução do Direito português” irá reunir mais de sessenta juristas: Cunha Rodrigues, Henriques Gaspar, Leonor Beleza, Nazaré Costa Cabral, Correia de Campos, Pinto Ribeiro, Agostinho Miranda, entre outros. “Os bloqueios e perversões que existem, nomeadamente na área penal, não nos devem distrair da profunda transformação que tornou Portugal mais livre, com mais direitos e um Estado mais moderno”, diz o catedrático que pensou o evento.
Ao longo de três dias, muitos são os ramos de Direito analisados, com uma atenção particular aos que não existiam, ou não estavam desenvolvidos, quando ocorreu o 25 de Abril – casos do direito de família ou direito do trabalho, tal como existe hoje. A profunda alteração da Constituição e do regime de direitos, liberdades e garantias, o sistema de justiça da democracia, a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias e o direito europeu, transformaram estruturalmente a vida jurídica do país: será estudada a evolução do direito à saúde e à segurança social, do regime económico vigente – a afirmação de um direito assente na regulação e na concorrência. Também no direito fiscal e das finanças públicas, no controlo dos dinheiros públicos, muito há a assinalar
“A construção do Estado de Direito em Portugal é um processo bem-sucedido que, todavia, não seguiu uma linha totalmente coerente”, diagnostica Eduardo Paz Ferreira. “Há avanços e recuos, há mudanças de sentido, mas, de uma forma geral, a evolução foi no sentido de modernizar o Estado”, acrescenta.
Justas homenagens
Na sessão de abertura serão oradores o ex-procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, o ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Henriques Gaspar, a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, o diretor da FDUL, Eduardo Vera Cruz, e Eduardo Paz Ferreira.
Nessa sessão será também feita uma homenagem a Jorge Miranda, o professor de Direito que os portugueses mais associam à Constituição da República Portuguesa de 1976. Ao longo do congresso haverá outras homenagens: a Isabel Magalhães Colaço, primeira mulher doutorada em Direito em Portugal – e única até quase duas décadas depois do 25 de Abril – responsável pela alteração do regime de direito da família; a Odete Santos, a falecida deputada do PCP e pioneira na defesa dos direitos dos trabalhadores e no desenvolvimento dos meios de resolução alternativa de litígios; e a Paulo de Pitta e Cunha, pelo seu trabalho na integração europeia de Portugal, tendo sido fundador do Instituto Europeu da FDUL.
Áreas jurídicas emergentes – como o direito europeu, o direito digital ou o direito de imigração – vão ter painéis próprios. A última sessão será dedicada aos “Novos desafios”: para além de dois advogados veteranos – o ex-ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro e o especialista em petróleos José Pereira de Miranda – participarão jovens juristas, entre os quais o presidente da Associação Académica da FDUL, Pedro Fortuna.
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PROGRAMA DO CONGRESSO
Da Ditadura à Democracia. 50 Anos de Evolução do Direito Português
AUDITÓRIO DA FDUL | 19-21 MARÇO 2024
Dia 1- 19 de Março
Abertura
Ruturas e continuidades (10h)
Eduardo Vera-Cruz Pinto – Diretor da FDUL
Eduardo Paz Ferreira – Professor Jubilado da FDUL; Presidente do IDEFF
Maria Lúcia Amaral – Provedora de Justiça
José Cunha Rodrigues – Ex-Procurador Geral da República; ex-Juiz do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (atual TJUE)
Henriques Gaspar – Ex-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Homenagem ao General Ramalho Eanes
Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda
- Direitos Fundamentais (11h30)
Jorge Reis Novais – Professor da FDUL
Maria José Rangel Mesquita – Professora da FDUL
Miguel Prata Roque – Professor da FDUL
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- Organização Judiciária, Direito Penal e Processo Penal (14h30)
Maria Fernanda Palma – Professora da FDUL
José de Faria Costa – Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona; ex-Provedor de Justiça
Frederico da Costa Pinto – Professor da FDUNL
Rui Patrício – Advogado; Penalista
Inês Ferreira Leite – Professora da FDUL
- Meios de resolução alternativa de litígios (16h)
Vítor Gonçalves Gomes – Presidente do Conselho dos Julgados de Paz e ex-Presidente do Tribunal Constitucional
Nuno Villa-Lobos – Presidente do CAAD
Joana Campos Carvalho – Professora da FDUNL
Sofia Martins – Presidente da Associação Portuguesa de Arbitragem
- Direito da Família (17h30)
Leonor Beleza – Presidente da Fundação Champalimaud
Isabel Moreira – Deputada à Assembleia da República
Sofia Henriques – Professora da FDUL; Notária
Jorge Duarte Pinheiro – Professor da FDUL
Homenagem a Professora Doutora Isabel Magalhães Colaço
Dia 2 – 20 de Março
- Direito Fiscal e das Finanças Públicas (10h)
José Tavares – Presidente do Tribunal de Contas
Eduardo Paz Ferreira – Professor Jubilado da FDUL; Presidente do IDEFF
Nazaré Costa Cabral – Presidente do Conselho das Finanças Públicas; Professora da FDUL
Maria Oliveira Martins – Professora da Faculdade de Direito da UCP
Clotilde Celorico Palma – Fiscalista; Professora do ISCAL
Carlos Lobo – Professor da FDUL; Advogado
- Direito da Regulação e da Concorrência (11h30)
Miguel Moura e Silva – Vogal da Autoridade da Concorrência; Professor da FDUL
José Renato Gonçalves – Professor da FDUL
Paula Vaz Freire – Professora da FDUL
____________pausa ____________
- Direito do Trabalho (14h30)
António Monteiro Fernandes – Professor Jubilado do ISCTE§
Maria do Rosário Ramalho – Professora da FDUL
Margarida Seixas – Professora da FDUL
David Carvalho Martins – Advogado
Carmo Afonso – Advogada
Homenagem a Odete Santos
- Direito Digital (16h)
Eduardo Vera-Cruz Pinto – Professor e Diretor da FDUL
Pedro Verdelho – Procurador da República
Paulo de Sousa Mendes – Professor da FDUL
Manuel Lopes Rocha – Advogado
- Direito do Consumo (17h30)
Luís Silveira Rodrigues – Presidente da DECO
João Alves – Procurador da República
Elsa Dias Oliveira – Professora da FDUL
Paulo Fonseca – Jurista da DECO
Dia 3 – 21 de Março
- Direito da Saúde e da Segurança social (11h)
António Correia de Campos – Ex-Ministro da Saúde; Professora da ENSP NOVA
Paula Lobato Faria – Professora da ENSP NOVA
Jorge Simões – Professor no IHMT da UNL e na Universidade de Aveiro
Pedro Caridade Freitas – Professor da FDUL; Diretor jurídico da APIFARMA
Cláudia Monge – Professora da FDUL
____________pausa ____________
- Direito da Imigração (14h)
Constança Urbano de Sousa – Professora da Universidade Autónoma de Lisboa
Ana Rita Gil – Professora da FDUL
Wladimir Brito – Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho
Sofia Pinto Oliveira – Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho (a confirmar)
Gonçalo Matias – Professor da Faculdade de Direito da UCP
- Direito Europeu (15h30)
Nuno Cunha Rodrigues – Presidente da Autoridade da Concorrência; Professor da FDUL
Pedro Gonçalves – Professor da FDUC
António Goucha Soares – Professor do ISEG
Alessandra Silveira – Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho
Carlos Botelho Moniz – Presidente da Associação Portuguesa de Direito Europeu; Advogado especialista em Direito Europeu e da Concorrência
Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha
- Encerramento – Novos desafios – 25 de Abril: passado e futuro (17h)
José António Pinto Ribeiro – Advogado
Agostinho Miranda – Advogado
André Marçalo – Assistente convidado da FDUL
Patrícia Bastos – Assistente convidada da FDUL
Pedro Fortuna – Presidente da AAFDL
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CONGRESSO
Da Ditadura à Democracia. 50 Anos de Evolução do Direito Português
Apresentação
No dia 25 de Abril de 1974, arriscando as suas vidas e carreiras, centenas de militares, aos quais de juntou o povo português, partiram para uma revolução, pondo termo à mais longa ditadura na Europa Ocidental.
Uma ditadura que tivera origem numa sublevação militar em que se misturaram diversas inspirações, da monárquica ao conservadorismo mais ou menos autoritário. O regime, que tinha se afirmado depois de várias querelas, mesmo entre inspiradores e autores do golpe de 28 de maio, acabaria por conduzir à ascensão ao poder de Oliveira Salazar. Salazar exerceu o poder até 1968, seguindo-se-lhe Marcello Caetano, que criou expectativas de democratização que não viriam a concretizar-se. A ditadura assentava na supressão dos direitos cívicos e políticos e era apoiada por um conjunto de instituições destinadas a garantir a ordem e os “brandos costumes”, com relevo para a PIDE – a polícia política –, os Tribunais Plenários, totalmente alinhados com a vontade da Polícia, ou a Legião Portuguesa.
No contexto do Estado Novo, como viria a ser designado, era marcante a proibição da liberdade de expressão e de qualquer manifestação política, com exceção para aquelas que fossem promovidas pela União Nacional – o partido único – ou a Mocidade Portuguesa – organização juvenil moldada em instituições do fascismo italiano. Um Estado e uma sociedade marcados pela profunda desigualdade entre homens e mulheres, estando reservada a estas um lugar de subalternidade na vida política e social.
As principais referências ideológicas e políticas tinham, aliás, origem no fascismo em Itália, na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco e em doutrinas católicas como as de Charles Mauras.
A primeira intervenção militar para repor a democracia deu-se em Portugal e foi obra de um conjunto de militares decididos a não permitir a continuação da guerra colonial.
À semelhança golpe de estado de 28 de Maio, também entre os militares de Abril se juntaram várias sensibilidades, mas todas excluíam a hipótese de soluções ditatoriais.
Foi nesse contexto que surgiu o Programa do Movimento das Forças Armadas, documento fundador do regime democrático e que apontava para um conjunto de medidas de natureza política, económica e social, visando consolidar a democracia, sem esquecer a necessidade de combater a pobreza e a desigualdade social.
Especialmente relevante é o facto de o Programa do Movimento das Forças Armadas anunciar que, após um curto período de transição e das medidas urgentes necessárias para abrir o caminho para um Estado de Direito, e «logo que eleitos pela Nação a Assembleia Legislativa e o novo Presidente da República, será dissolvida a Junta de Salvação Nacional e a ação das forças armadas será restringida à sua missão específica de defesa da soberania nacional».
Se o lema que ficou a marcar o Estado Novo foi “Deus, Pátria, Família”, o do regime saído do 25 de Abril foi o dos “três dês”, para que apontara José Medeiros Ferreira: descolonizar, democratizar e desenvolver.
No seio das forças armadas persistiam diferentes sensibilidades, a exigir acordos, muitas vezes difíceis de manter, num contexto em que, entre 1974 e 1976, se sucederam diversos conflitos.
Mas o novo regime afirmava-se pela abertura à democracia quanto às decisões futuras e esta solução implicava um debate aberto, com vista à definição das bases de uma transição jurídica definida pela maioria dos portugueses, através dos seus representantes.
A transição democrática exigia uma profunda transformação em todos os ramos do direito e essa transformação não conheceu ainda uma reflexão global. O objetivo destas jornadas é o de analisar e discutir criticamente em que medida o direito acompanhou e perspetivou tais mudanças ao longo dos 50 anos de democracia que agora se comemoram.
Ao longo de três dias, iremos analisar, em especial, a profunda alteração da Constituição e do regime de direitos, liberdades e garantias, o sistema de justiça da democracia, a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias e o direito comunitário, que passa a vigorar em Portugal, a evolução do direito do trabalho, do direito à saúde e à segurança social, do regime económico vigente – com a supressão dos entraves corporativos e a afirmação de um direito assente na regulação e na concorrência –, do direito fiscal e das finanças públicas e do controlo dos dinheiros públicos.
Para levar o projeto a bom porto, contamos com um qualificado elenco de juristas, professores e investigadores de diversas áreas do direito, a quem agradecemos a sua associação a esta iniciativa, permitindo-nos traçar uma ampla visão do direito em ação e refletir sobre as mudanças que se verificaram e as que que continuam a exigir-se 50 anos após a Revolução de Abril.
Três dias fascinantes se apresentam diante de nós. Seguramente concluiremos que a unanimidade foi rara, mas que muitas foram as pistas abertas e os caminhos trilhados. Este debate seguramente perpassará pelas várias sessões.