Espiões involuntários nas traseiras da História
“Felix Mikailovitch”, de Amadeu Lopes Sabino, é um romance de espionagem cuja acção se desenrola nos ambientes mais sofisticados da Europa.
Não é habitual na literatura portuguesa a utilização tão hábil das convenções do romance de espionagem, mas é o caso deste “Felix Mikailovitch”, de Amadeu Lopes Sabino (Elvas, 1943), que também se pode definir como história de amor e livro político.
O narrador é diplomata de sucesso, número dois da embaixada portuguesa na capital belga, e a acção decorre em 1965, sobretudo nos ambientes mais sofisticados da Europa, no meio de uma intriga amorosa que se conjuga com uma conspiração internacional.
No fundo, trata-se de um romance sobre a decadência de Portugal e a sua resistência ao tempo, numa época em que, como diz um dos diplomatas, “Portugal perdeu o sentido do seu tamanho”.
O autor recria com verosimilhança os salões de gente culta que discute política sem se comprometer – no fundo, a bolha de elites que transbordam de orgulho. O narrador diz no início que está a contar a história de um amor feliz e o seu tom é de nostalgia. A misteriosa personagem que dá nome ao livro, Felix Mikailovitch, surge apenas a meio da história e nunca parece ser relevante: o leitor não chega a perceber se ele é espião, traidor ou agente duplo. Aqui, nada é o que parece.
O romance tem imaginação. As personagens são complexas, como é o caso do narrador, um diplomata cuja fama se deve aos comunicados de imprensa redigidos com categoria. “Prosa clássica, capaz de convencer as elites, porque convencer o populacho é cada vez mais difícil e menos necessário”, comenta alguém, em estado alcoólico.
Amadeu Lopes Sabino é um autor multifacetado. Licenciado em Direito, esteve na oposição, foi jornalista no Diário de Lisboa e no Tempo e o Modo; incómodo para o regime, preso pela PIDE, passou pelo exílio. Depois do 25 de Abril escreveu regularmente em O Jornal e A Capital. Entre 1984 e 2008 trabalhou em Bruxelas, nas instituições europeias, chegando a ser conselheiro do presidente da Comissão, Durão Barroso. A sua obra reúne mais de duas dezenas de volumes de ficção e crónica.
Neste seu mais recente romance há conversas sobre a política dos anos 60, a situação periclitante do império, a Guerra Fria e toda a hipocrisia do regime. A diplomacia funciona nas “traseiras da História”, diz um dos diplomatas. A estrutura do livro é adequada às intenções do autor, que imagina uma cena entre o narrador e Salazar, a que se podem acrescentar outros elementos reveladores da qualidade literária como, por exemplo, os fios de histórias dentro da trama principal, a riqueza de vocabulário e a força estilística.