As unidades de saúde familiares (USF) modelo C estão previstas na legislação desde a lei da reforma dos cuidados de saúde primários, em 2005. Nunca se materializaram, pois, nenhum governo reconheceu vantagens claras deste modelo. Na realidade, nada se alterou que altere este racional.

Já temos um modelo que funciona, que tem garantido acesso aos cuidados de saúde, retém profissionais e oferece uma relação de proximidade com qualidade e confiança: as USF modelo B. As USF já são avaliadas pelo seu desempenho e, no modelo B, o pagamento dos profissionais possui uma componente variável, indexada aos resultados obtidos. Combinado com a organização do trabalho, a partilha de responsabilidades e a cultura organizacional, este modelo atrai naturalmente profissionais e consegue alcançar elevados níveis de cobertura por médico e enfermeiro de família.

O que leva o Governo a pensar que este modelo vai atrair mais médicos e enfermeiros de família? Há mais recursos disponíveis? Nesse caso, porque estão a ser desviados recursos públicos para experiências duvidosas, quando existe um modelo que funciona? Porque não está o governo focado em melhorar o que existe, dotando-o de recursos que afinal estão disponíveis, em vez de se lançar em experimentos e dispersão de recursos?

Não é plausível que este modelo consiga atrair novos profissionais de fora do SNS. Pelo contrário, há o risco, assumido publicamente, de desvio de recursos humanos do próprio serviço público. As promessas da criação de mecanismos de controlo serão inconsequentes. Não é possível, nem há meios, para monitorizar esta dinâmica.

O governo promete autonomia de contratação às novas USF. Contratar profissionais de saúde não é fácil. Requer tempo, recursos e uma equipa dedicada para o efeito. Não é claro como as novas USF, que se prevê virem a ser constituídas por associações de profissionais, terão essa capacidade. A não ser que o plano passe por encontrar uma forma de atribuir ao SNS a missão de recrutar profissionais para serviços privatizados, facilitando-lhes a vida em nome do controle de recursos humanos, ou por garantir condições para este novo modelo ser gerido, de forma direta ou por interpostas pessoas, por quem já tem capacidade instalada para fazê-lo, os grandes grupos da saúde.

Relacionado com as contratações de profissionais: há anos que pedimos autonomia para as instituições. Não faz sentido que, mesmo tendo um mapa de pessoal aprovado, qualquer contratação devidamente enquadrada nas necessidades reportadas tenha de ser aprovada pelo ministério. O Estado sempre agiu contra os seus próprios interesses e condicionou a expansão dos serviços de saúde. Como fica agora evidente, a autonomia das instituições é algo virtuoso, que auxilia na consecução do objetivo de melhorar o acesso aos cuidados de saúde. Porque demoramos tanto tempo a assumir esta evidência? E a mesma autonomia será estendida às restantes instituições?

Potencialmente mais grave, o modelo de prestação de cuidados das USF-C não está necessariamente assente na figura do médico e enfermeiro de família. Por aquilo que se vai sabendo, pode ser baseado num trabalho à peça e despersonalizado, sem uma verdadeira aposta na prevenção da doença e promoção da saúde. Portugal encontra-se com ótimos indicadores no que concerne aos internamentos evitáveis. Somos dos melhores da OCDE neste capítulo, um enorme testemunho ao bom trabalho desenvolvido pelos cuidados de saúde primários, não só as USF modelo B, mas todo a arquitetura atual. É deveras incompreensível qualquer opção que não seja melhorar e reforçar o existente, que tão bons resultados tem alcançado.

A saúde privada cresceu. Os grandes privados absorveram os pequenos e médios. É um setor com recursos e com pouca concorrência, onde a regulação é difícil, devido aos permanentes conflitos de interesse e à falta de meios. Os cuidados de saúde primários eram, até agora, o único sítio onde não existia prestação privada de cuidados de saúde. Este governo decidiu abrir essa porta, com previsíveis resultados negativos na qualidade, acesso e integração de cuidados.
Precisamos de uma saúde menos ideológica. A solução natural de quem decide só pode ser investir no que funciona para o cidadão e para os profissionais e que é responsável pelos bons indicadores de saúde que Portugal apresenta e que fazem inveja na OCDE.

Enfermeiro da Urgência Pediátrica e coordenador da Unidade de Saúde Pública Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca