“O hábito de tudo tolerar pode ser a causa de muitos erros e de muitos perigos”
Cícero
Faço a minha muitas vezes habitual declaração de interesses: nunca percebi a cultura militar, apesar de ter militares na família, porque não está na minha natureza não questionar ordens. Dito isto, um familiar meu directo é advogado dos 13 militares que, ao contrário do que se diz, não incorreram na tão falada insurreição: o Estado, que também devia zelar pela sua saúde, deu-lhes ordem para entrarem num navio que não cumpria os patamares básicos da segurança. Fê-lo sendo conhecedor do exacto estado do navio e permitindo-se não se culpar a si próprio.
Num país a sério cairiam as cabeças dos responsáveis. Nesta comédia, os spin doctors constroem uma narrativa e a única coisa que passa a relevar é limpar a imagem dos que mandam. Tive oportunidade de ouvir comentadores, que como eu nunca puseram o pé num navio daqueles, dizerem que os militares não podem envergonhar-nos. A mim, o que me causa profunda vergonha é um Estado que trata assim os que o representam diariamente, à margem de penachos e de cargos.
Importa, pois, relembrar que, como o chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima não podia desconhecer, atendendo a que tal lhe foi expressamente escrito, o navio apresentava graves defeitos, entre os quais apresentar apenas um motor em funcionamento, já que o de bombordo estava inoperacional, motor aquele que, por seu turno, devia ter sido objecto de manutenção às 2 mil horas de funcionamento e que tinha fugas de óleo, a par de uma falha na bomba de refrigeração do espaço de máquinas e outros problemas nos três geradores. Por outro lado, longe de a posição dos 13 assentar num juízo de prognose, o que ainda não foi dito é que, na viagem prévia do navio, de regresso ao Funchal, já tinham existido problemas, com água a entrar na embarcação e que só foram resolvidos pela equipa de manutenção.
Perante a posição dos militares, rapidamente a opinião pública foi levada pela mão a concluir que o errado não está num Estado, num governo, num ministro, num chefe do Estado-Maior que permitem que tal suceda. Como tem sido já hábito neste país, quem se lixa nesta história é o mexilhão, ou seja, os militares que não embarcaram em mais uma viagem de faz-de-conta, num barco que já nos foi vendido fora do seu prazo.
E, uma vez denunciado o estado do navio, também de uma forma quase automática se passou a reescrever a história, seja limpando-o de imediato, para ser prontamente filmado a reluzir, seja através da decisão do próprio Governo de enviar um avião da Força Aérea para proceder às reparações de imediato. Tudo enquanto se retiveram os militares, visando apagar as provas e a demonstração de que tinham razão.
Podemos – e estamos habituados – a tolerar quase tudo. Não podemos tolerar a mentira, principalmente quando a mesma só visa encontrar bodes expiatórios para responsabilidades superiores.