O IVA zero no cabaz de 46 bens essenciais, uma medida que vigorou nos últimos oito meses para apoiar as famílias portuguesas no pico da inflação, terminou e voltou ontem a aplicar-se o imposto de 6% nos produtos. Uma alteração que já levou algumas dezenas de pessoas a recorrer à Deco desde o início do ano, para tentar perceber que apoios existem. E não apenas as que estão abrangidas pelas prestações sociais – que vão ser reforçadas para compensar o fim da medida. Também quem fica de fora deste universo. Para a associação de defesa do consumidor, este apoio devia ser alargado.

“As pessoas estão preocupadas”, afirma Natália Nunes, coordenadora do gabinete de proteção financeira da Deco ao NOVO, numa altura em que ainda não é possível quantificar o impacto do fim do IVA Zero na carteira das famílias, mas em que há a certeza de que “irá ter um grande efeito, sobretudo nas famílias de menores rendimentos”, nas quais a “fatura com alimentação absorve uma grande parte do rendimento”.

Em outubro do ano passado, o ministro das Finanças, Fernando Medina, anunciou que a isenção do IVA – em vigor desde meados de abril – não seria renovada em 2024, estando prevista uma compensação de valor equivalente no reforço das prestações sociais das famílias mais vulneráveis. Nesse sentido, os 550 milhões de euros que poupa com o fim da medida serão canalizados para reforçar os apoios sociais, abrangendo 1,5 milhões de beneficiários.

Destes 1,5 milhões de beneficiários, a fatia mais significativa é a do abono de família. Segundo os números avançados à data por Fernando Medina, 1,1 milhões de pessoas com esta prestação recebe mais sete euros nas suas prestações por compensação do IVA zero. Com a internalização do apoio de 15 euros por criança ou jovem que já estavam a receber, os beneficiários até ao 4.º escalão do abono de família têm um aumento de 22 euros nas prestações, o que representa 264 euros por ano.

Além disso, 150 mil pessoas que recebem o complemento solidário para idosos recebem um reforço do apoio, assim como 180 mil com rendimento social de inserção (RSI) e os beneficiários do complemento da prestação social para a inclusão (PSI).

“Temos algumas dúvidas” de que o reforço das prestações sociais “seja suficiente” para apoiar quem mais precisa, salienta Natália Nunes. Esta preocupação “reflete a pressão que as famílias estão a fazer junto dos serviços da Deco. Sei que hoje [ontem] estamos a 5 de janeiro, mas a verdade é que temos recebido inúmeras solicitações por telefone – algumas dezenas desde o início do ano – de pessoas a perguntar quais são os apoios que vão estar em vigor este ano”, refere, notando que esta tendência começou a verificar-se no final de dezembro.

É que além de ser necessário somar, a partir de agora, o IVA aos produtos essenciais, é possível que a subida não fique por aqui. “Com o fim do IVA zero significa que vamos ter, pelo menos, um aumento de 6% do valor desses mesmos bens. Por outro lado, é expectável que os preços de alguns produtos possam subir além deste valor”, nota ao NOVO a responsável da associação para a defesa dos consumidores.

Preços sobem além do IVA
Este cenário já tinha sido previsto pela Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED). Em entrevista ao Jornal Económico, o diretor-geral da associação afirmou que o “aumento dos preços deverá sentir-se no final de janeiro. Desde logo são mais 6% de imediato que teremos de refletir no preço final e entregar ao Estado esse valor. Acresce que estamos ainda a enfrentar alguma pressão nas matérias-primas, que estão claramente inflacionadas, como, por exemplo, os cereais que tem consequências na produção de carne, leite e ovos devido às rações e no preço do pão”.

Também o preço do cacau, com implicações noutros produtos, está “muito pressionado” e há algumas descidas no açúcar, mas “entre o deve e o haver, vai naturalmente sentir-se nos bolsos dos consumidores” a reintrodução do IVA nos produtos que foram abrangidos pela medida, bem como a manutenção de preços altos de algumas matérias-primas essenciais, referiu Gonçalo Lobo Xavier. Por outro lado, o responsável destacou os custos de outros fatores de produção, num cenário de maior incerteza, gerado pelos conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente, com impactos, por exemplo, no preço da energia.

O preço final de muitos bens alimentares também poderá ainda vir a refletir o aumento de outros custos que recaem sobre as empresas. “Estamos a entrar em 2024 com um aumento significativo do salário mínimo, que terá implicações no salário médio de outros trabalhadores, e também com aumentos nas portagens e nos transportes, que naturalmente se reflete em toda a cadeia de valor e no preço final dos produtos”, referiu Gonçalo Lobo Xavier.

De acordo com o diretor-geral da APED, “as famílias estão com os orçamentos muito pressionados”, recordando que irá acrescer ainda a fiscalidade verde, nomeadamente as taxas que vão recair sobre os sacos ultraleves e embalagens de take away, que deverão estar em vigor no primeiro trimestre deste ano. “Tudo somado, obviamente que terá um impacto nos bolsos das famílias”, concluiu.

Perante este aumento dos custos, a Deco partilha as suas dúvidas quanto à eficácia do reforço das prestações sociais, não só pelo valor em causa, mas também por apenas abranger as famílias economicamente carenciadas.

Medida mais alargada
“É verdade que a medida do IVA zero era transversal. E sabemos que as medidas devem ser mais direcionadas para quem mais necessita. Agora, não são só as famílias que estão verdadeiramente numa situação de vulnerabilidade económica, as pessoas que recebem as prestações sociais, que têm abono social, que neste momento necessitam de alguma ajuda”, afirma a coordenadora do gabinete de proteção financeira da Deco.

“Quando foi para dar o apoio ao pagamento da renda, um dos critérios era o rendimento e o rendimento era muito superior a estes valores que definem que famílias vão ter direito ao apoio. O apoio devia ser mais alargado. E, além disso, resta saber se o valor vai fazer verdadeiramente diferença”, nota Natália Nunes, relembrando que as “duas grandes rubricas do orçamento familiar que absorvem mais dinheiro é, por um lado, a alimentação, mas é também a habitação”.

“A habitação continua a ter aqui uma grande pressão. É verdade que as taxas de juro tendem a estabilizar, mas as prestações continuam elevadas. E sabemos o problema que existe agora no mercado de arrendamento. As rendas estão excessivamente elevadas e quem já tem contrato de arrendamento, neste ano, vai ter uma atualização da renda superior aos 6%. Claro que podemos dizer que existem apoios ao pagamento da renda. Eles existem, mas não são para todos. A verdade é que deixam muitas famílias de fora. Essas ajudas são bem-vindas, mas não são suficientes para aquelas famílias que têm muito baixo rendimento”, conclui a coordenadora do gabinete de proteção financeira da Deco.

Cabaz atinge valor mais elevado em dois anos
O preço do cabaz alimentar de 63 bens essenciais monitorizado pela Deco Proteste subiu quase seis euros na primeira semana de 2024 e atingiu o valor mais alto dos últimos dois anos, de acordo com dados divulgados nesta semana.

Na primeira semana do ano, a 3 de janeiro, o cabaz custava 236,04 euros. Há dois anos, quando a organização de defesa do consumidor iniciou esta monitorização, custava 187,70 euros.

De acordo com a Deco Proteste, entre 27 de dezembro de 2023 e 3 de janeiro de 2024, os preços subiram mais no caso do azeite virgem extra, arroz carolino e carapau. Enquanto o azeite virgem extra aumentou 1,62 euros (17%) neste período, o carapau subiu 59 cêntimos (14%) e o arroz carolino ficou 24 cêntimos mais caro (13%).

Analisando o último ano, entre 4 de janeiro de 2023 e 3 de janeiro de 2024, a mesma entidade conclui que os preços que mais subiram foram o do azeite virgem extra (mais 87% num ano), o da pescada fresca, que subiu 45%, e o das salsichas frankfurt, cujo custo cresceu 43%.

A subida dos preços dos bens alimentares ajudou a impulsionar a inflação durante grande parte do ano passado, mas nos últimos meses começou a verificar-se um alívio no aumento dos preços. Segundo a estimativa rápida publicada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) no final de 2023, a taxa de inflação terá diminuído para 1,4% em dezembro, menos 0,1 pontos percentuais do que em novembro, fixando-se a variação média do ano nos 4,3%.

O IVA zero foi implementado pelo Executivo de António Costa a 18 de abril de 2023, com o objetivo de apoiar as famílias pressionadas pela inflação elevada. Esta medida abrangeu um leque de 46 tipologias de bens alimentares que desde 4 de janeiro regressaram às taxas de IVA habituais, voltando, na maior parte dos bens, à taxa de 6% (como, por exemplo, no pão, azeite, ovos, leite, arroz, massas, algumas frutas e legumes, carnes e peixes) e, no caso do óleo, à taxa de 23%.

No entanto, a medida não se refletiu da mesma forma em todos os alimentos, com alguns a baixarem de preço, como seria esperado, enquanto outros acabaram por continuar a aumentar, ficando mais caros do que antes da decisão do governo.

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 06 de janeiro