A última semana revelou-se devastadora para a campanha de Joe Biden e são poucos os analistas que acreditam que vai manter a candidatura até ao fim. Atualmente, no mercado de apostas, Kamala Harris já ultrapassou o presidente norte-americano como a mais provável candidata democrata a enfrentar Donald Trump em novembro. Se tal acontecer, será uma situação quase inédita, lançando esta campanha num total caos, sobretudo do lado democrata.

Raramente se assistem a momentos que transformam integralmente uma campanha presidencial, mas o debate alterou radicalmente a conjuntura e dificilmente Joe Biden sobreviverá politicamente à humilhante prestação no debate de Atlanta. Estas não são propriamente boas notícias para o Partido Democrata, mas a culpa é exclusivamente sua, pois os sinais das debilidades eram evidentes há muito tempo. Depois de anos a proteger o presidente, com poucas entrevistas, raras conferências de imprensa ou poucas aparições fora do controlo do partido, foi necessário um debate de 90 minutos sem salvaguardas para todos perceberem o óbvio: Biden não tem condições para mais quatro anos.

Desde o debate, alguns dos principais jornais que apoiam o presidente apelaram à sua desistência, como foi o caso do New York Times, da New Yorker ou do Atlanta Journal-Constitution. Poucos políticos democratas surgiram em público a apelar ao mesmo, mas sabe-se que vários governadores, senadores e congressistas têm demonstrado, em privado, preocupação e até consternação pela atual situação. Como dizia Van Jones esta semana, ele que é um comentador político muito próximo dos Democratas, uma coisa é o que se diz em público, outra bem diferente são as conversas privadas.

O presidente norte-americano e o seu círculo têm resistido e até dado sinais de que não pretendem desistir, mas, se estivermos atentos aos media americanos, poucos acreditam que será Biden a defrontar Trump. As primeiras sondagens publicadas após os debates, sobretudo nos swing states, evidenciam a queda da popularidade do presidente e muitos acreditam que não conseguirá recuperar. Alguns doadores milionários já sinalizaram que irão fechar a torneira enquanto Biden for candidato e é muito provável que se afaste nas próximas duas semanas.

É aqui que surge Kamala Harris. Ao contrário do que muitos pensavam, a vice-presidente norte-americana parte como grande favorita para obter a nomeação, caso Biden se retire realmente da corrida. Apesar de ser extremamente impopular, mais até do que o próprio presidente, ninguém acredita que o establishment democrata não escolha a primeira mulher negra a ocupar o cargo de vice-presidente. Num partido dominado pelas políticas identitárias, seria muito complicado afastar uma mulher negra para selecionar um homem branco. Ou até Gretchen Whitmer, a popular governadora branca do Michigan.

Além disso, o próprio Biden, caso se retire, não deixará de dar-lhe o seu apoio, tal como, possivelmente, os presidentes Barack Obama e Bill Clinton. Daí que este seja o nome que circula em todos os jornais americanos, havendo também pressões para que nenhum outro democrata se candidate à nomeação. Seria uma espécie de coroação na convenção de Chicago, frustrando as aspirações de todos os political junkies para uma convenção aberta.

Donald Trump está expectante. Desde o debate tem estado bastante discreto, mas tem dado sinais de que prefere defrontar Biden. No entanto, não estará propriamente descontente com Kamala Harris. Acredita que, dadas as fragilidades conhecidas, terá a capacidade de expô-la publicamente e foi apanhado esta semana numa conversa privada a dizer que “Kamala é muito fraca”. Será mesmo isso que ele pensa. Talvez não esteja errado, mas a vice-presidente terá a sua oportunidade para provar que ele está errado.

Especialista em política norte-americana