As gerações posteriores à IIª guerra mundial viveram uma época dourada de paz na Europa que permitiu aos países a capacidade de investirem no Estado Social, em detrimento do investimento em capacidades de defesa. Isto foi-nos favorável a múltiplos níveis, permitindo democratizar o acesso à educação, aos sistemas de saúde e a uma diminuição das desigualdades socioeconómicas.

Na Europa e em Portugal, num ambiente de bipolaridade, tivemos sempre quem se preocupasse em nos defender, quem investisse massivamente em recursos humanos e em meios para que a nossa defesa estivesse assegurada. No âmbito da NATO, e muito devido ao esforço dos Estados Unidos em particular, a missão central foi a dissuasão das veleidades expansionistas da URSS, o que foi feito sempre com êxito.

Este contexto e principalmente o do Pós-Guerra Fria, levou a um continuado desinvestimento nas Forças Armadas (FFAA) europeias, não tendo Portugal sido exceção.

A crise financeira de 2008/2009 impôs a necessidade de cortes na despesa publica e a área da Defesa nos países europeus foi severamente atingida, reduzindo operacionais e cortando investimentos. Em Portugal a “reforma 2020” materializou de forma acentuada este desinvestimento.

Mas se o mundo mudou com o fim da bipolaridade, com a crise financeira e com reorientação das preocupações estratégicas dos Estado Unidos da América (EUA) do espaço atlântico para a Ásia Pacifico, essa mudança acelerou no dia 24 de fevereiro de 2022 com a guerra na Ucrânia, em que a invasão militar Russa a um estado soberano colocou a Europa como um dos grandes focos de instabilidade mundial.

Ter novamente a guerra “à porta” levou a uma responsabilização e a uma reorientação na estratégia dos países da União Europeia (UE) no capítulo da defesa e segurança. A UE percebeu que era necessário afirmar-se também como um ator de hard power global, deixando de se ver, apenas, como uma potência normativa alicerçada em soft power e diplomacia comercial.

A guerra na Ucrânia estimulou os estados europeus a aumentarem os seus orçamentos de defesa. Os países europeus anunciaram um aumento total com o investimento em Defesa e a UE deu passos importantes no apoio aos ucranianos, fornecendo apoio financeiros em assistência militar, provando que está disposta a suportar ampla assistência aos seus parceiros. Esta evolução recente não apaga, no entanto, um período prolongado de cortes substanciais na despesa com a defesa efetuados pelos Estados-membros após a crise económica e financeira de 2007-2008.

Um dos desafios é que para acomodar esta reorientação estratégica são necessários militares, algo que o continuado desinvestimento nas forças armadas desincentivou, diminuindo significativamente o seu contingente nos países europeus. Mais uma vez Portugal não foi exceção.

Mas não é só um problema de quantidade. É também de qualidades, de especialização. A guerra também mudou. Os conflitos modernos envolvem cada vez mais operações ciber, incluindo ataques cibernéticos aos sistemas de defesa, às infraestruturas críticas e às redes de comunicação. Os drones e os veículos terrestres autónomos desempenham um papel crescente em operações militares, bem como a robótica militar e a Inteligência Artificial. Os sistemas de armas são cada vez mais complexos e intensivos em eletrónica, comunicações e computação.

Formar e manter os militares que operam estes sistemas e que têm estas capacidades é muitíssimo oneroso.

É neste contexto de exigências que devemos debater como aumentar o contingente das nossas FFAA, valorizar a carreira militar, capacitar e reter recursos jovens e altamente especializados. Servir os ramos não pode ser visto unicamente como um serviço à Nação, mas também como uma opção profissional atrativa que servirá também para defender toda uma realidade territorial, cultural e linguística adotada e partilhada por pessoas de outras nacionalidades, que não apenas a portuguesa. Por pessoas que têm um vínculo a Portugal e que vai para além do seu nascimento em território português ou da sua ancestralidade. Um vínculo que afasta riscos de falta de coesão ou de formação de uma força mercenária.

Para além deste contexto Portugal tem um desafio acrescido; o dramático envelhecimento da sua população.

Ação absolutamente necessária é a efetiva valorização das carreiras e dos vencimentos dos militares. Olhar às necessidades materiais é crucial para aumentar a atratividade e a retenção dos elementos das FFAA. De que serve ter os meios, cada vez mais exigentes na sua operação, se não tivermos homens e mulheres motivados para os operar? Se não tivermos quem esteja capacitado para o fazer, devidamente remunerado quando equiparado aos seus pares?

Mas são necessárias outras soluções para aumentar a quantidade e qualidades dos nossos militares. Soluções reformistas, inovadoras. Soluções que não passem por reativar o vetusto serviço militar obrigatório, não só por incapacidade logística e financeira de integrar, dar condições de alojamento e alimentação e capacitar no espaço de quatro meses ou um ano a quantidade de mancebos necessários a um rácio razoável de oficiais, praças e sargentos, mas também, e essencialmente, por ser eticamente inaceitável que por meio da coerção estatal se obrigue a que jovens abdiquem da sua autonomia e liberdade individual e sirvam o estado nas condições e valores que esse mesmo estado intenda como as adequadas. A entrada nas FFAA ou é voluntária ou é inaceitável.

É neste contexto que se justifica refletir e discutir o recrutamento de não nacionais para as nossas Forças Armadas.

Porquê não equacionar que um nacional de um país NATO, residente em Portugal, conhecedor da nossa língua, enquadrado culturalmente e especialista em cibersegurança possa servir nas nossas FFAA? Não pode um nacional de um Pais da União europeia, ex-militar no seu país de origem, devidamente credenciado ao nível da segurança, residente em Portugal, médico, servir nas nossas FFAA? E cidadãos provenientes dos PALOP ou do Brasil, com enorme proximidade histórica e cultural a Portugal, que aceitem a condição militar nacional não podem servir nas FFAA portuguesas, desde que isso não entre em conflito com os seus estados de origem?

Não podem porque a constituição e a lei 174/99 do serviço militar não o permite, mas seria interessante que a revisão constitucional que decorre pudesse equacionar estas hipóteses, pois todos os contributos são relevantes. Infelizmente não será possível fazê-lo nesta revisão pois o período de propostas já terminou.

Sejamos realistas, o impacto concreto desta medida isolada seria residual, como o tem sido noutros países como a Espanha, a Dinamarca, a Bélgica ou a Irlanda. Mas em conjunto com outras medidas como o aumento da idade máxima de candidatura para as FFAA, ou mesmo a sua eliminação, como nos Estados Unidos da América, a criação de quadros permanentes de praças no Exército e na Força Aérea, à semelhança do que se verifica já na Marinha, devidamente valorizados materialmente, a equiparação da FFAA às forças de segurança mitigando a drenagem de recursos devido aos desequilíbrios de rendimento, a aposta na reativação dos cursos técnico / profissionais das Forças Armadas capazes de dar capacidades profissionais na vida civil pós militar ou incentivar a entrada de mais mulheres nas FFAA oferecendo políticas de licença de maternidade e paternidade que permitam que mulheres e homens equilibrem as responsabilidades familiares com a carreira militar. Estas medidas, juntamente com o recrutamento de não nacionais poderiam contribuir significativamente para, por um lado, estancar as saídas de militares, retendo-os e, por outro, atrair novos elementos.

Caracterizar como “estapafúrdia”, como “não solução” ou estigmatizar com o carimbo de “milícias” os estrangeiros que queiram servir nas FFAA, não contribuiu em nada para a discussão que se quer necessariamente ampla e aberta a múltiplas abordagens pelo contrário, revela preconceito e conceções retrogradas pouco alinhadas com os tempos e realidades que vivemos, tempos naturalmente cooperativos, colaborativos e partilhados ao nível das soberanias nacionais num mundo de desafios transnacionais que extravasam a dimensão puramente militar e territorial das fronteiras de cada país. E é de preconceito que falamos se considerarmos a nossa experiência no contexto da colonização portuguesa, por exemplo no Brasil, ou até nas mais recentes guerras de África, em que num ou noutro caso a integração de contingentes nativos, cultural e linguisticamente diferentes dos deste retângulo, foi uma realidade permanente. Quem recusa todas as hipóteses de trabalho nesta matéria é parte do problema e não da solução.

Chegamos ao limite da desautorização das Forças Armadas por desinvestimento. Este é o momento de melhorar a dimensão qualitativa e quantitativa das nossas FFAA, isto num momento em que nos confrontamos com uma crise política internacional e de inflação. Cabe nos justificar, perante quem nos elege, que é tão ou mais importante neste momento investir em segurança e defesa nacional do que em apoios sociais, serviços de saúde e educação utilizando os escassos recursos do Estado. Este desafio carece de novas políticas, resultantes de novas ideias, de um espírito inovador e reformista que o Partido Socialista não tem. Os socialistas são parte do problema e não da solução.

Membro da Comissão Executiva da Iniciativa Liberal