A última grande entrevista de Rui Nabeiro: “Sempre avisei que era possível”
Aos 91 anos, deixa-nos o fundador do Grupo Nabeiro, Rui Nabeiro. A entrevista que concedeu à Forbes, cheia de histórias e memórias, motivou uma capa que fica como referência deste grande empresário português.
Como gosta do seu café? “O meu café, gosto da forma como o puder vender.” O sorriso largo e a resposta pronta de um homem de negócios que aos 91 anos continuava a liderar, desde que aos 12 começou a trabalhar na torra do café e aos 19 tomou a pulso a empresa do tio Joaquim, o homem que mais o marcou na sua vida.
Rui Nabeiro recebeu-nos assim. Com um café e na azáfama de um dia-a-dia no escritório de Campo Maior onde labuta diariamente e onde também partilhou histórias da sua vida, desde a sua teimosia em não sair do Alentejo à forma cativante como fez crescer a empresa. Se há segredos? Muitos, relatados pelo caminho da conversa, mas que se resumem a um: “Aquilo que sentimos na nossa vida ou se faz com gosto ou, então, não serve para nada”. É esta a máxima que o acompanha e que transmite a quem por si passa, com muita humildade, mas também com muito orgulho “Não estudei. No Alentejo, só estudava quem podia e onde havia ensino próprio. Em Campo Maior só existia a primária, e já fui um herói porque fui um dos campo-maiorenses que fizeram a quarta classe.”
Começou cedo a trabalhar com o tio, “numa fabriqueta de cafés. Era um homem com uma atitude forte, que gostava muito de mim e deu-me a tranquilidade de eu ser quase o chefe daquilo tudo. Tinha 17 anos na altura e, quando ele faleceu, fiquei no comando”. Mas inquietava-o o espírito empreendedor, aquele que a sua mãe já tinha visionado quando a ajudava na pequena mercearia: “Sempre pensei em criar a minha própria casa, sem largar a outra. Pensava no café e como seria a nova marca. O mercado espanhol estava assegurado pela outra empresa. Não ia fazer concorrência à empresa existente; por isso, apostei no comércio local. Esse foi o meu ponto mais forte”: ser conquistador de pessoas. Rui Nabeiro explica que “conquistar é estar disponível. Foi aquilo que conquistei com o meu tio, que foi estar sempre disponível para ele. E conquistei o mercado numa altura em que as marcas já existentes tinham as suas zonas de trabalho. Tinha de pensar muito como fazer. E como fiz? A estudar o que os outros faziam”. Não foram tempos fáceis. Contratou o melhor vendedor do país. “Paguei-lhe até algo mais. Mas, passados alguns meses, veio dizer-me que ia embora porque não era capaz de vender um grama de café e que isso era uma vergonha para ele. Expliquei-lhe como fazer: dar crédito e colocar o café à porta de casa, porque tinha a carrinha. Ainda pensei que, sendo uma pessoa que sabe muito sobre o mercado interno, que eu conhecia pouco, possivelmente, as coisas não seriam tão fáceis como pensava. Mas, se ele queria ir, embora foi. Fiquei eu a tomar conta da situação.”
“Cuidado com o Nabeiro”
Nascido e criado no Alentejo, ali quis continuar. Na altura, alguém da concorrência ainda disse: “Cuidado que o Nabeiro já está a caminhar e aquilo não é para brincar.” A reacção foi que era do Alentejo e que, no Alentejo, andam devagar. Bom ouvinte, o comentador reagiu dizendo: “Até fui devagar. Sempre com os pés assentes no chão, fui caminhando. Fiz esse trabalho, que me deu força, deu ambição. O homem ou tem ambição e faz alguma coisa, ou não faz nada.” Fundamental é acreditar e, por isso, “quando o empregado se despediu e disse que eu não ia vender nada, eu respondi: ‘Vou vender.’ Ao fim de algum tempo, não se via muito desenvolvimento. O que se via é que eu ia conquistando as pessoas. Criei com os meus clientes um contrato de fornecimento com a avaliação do preço do café e o lucro que ficava na empresa. No fim de cada trimestre fazíamos as contas e dava um percentual ao nosso cliente. Isso chamou a atenção de muita gente. Diziam que eu não estava bom da cabeça, mas eu estava. E deu o seu resultado”. O passo seguinte, conta, foi “puxar pelas senhoras”, incentivar-lhes o negócio, pois eram muito poucas.
“Mantive o mesmo contrato mas, consoante um determinado número de quilos de café, dava-lhes um grãozinho de café em ouro num cofre todo ornamentado”, um gesto que foi muito bem acolhido e que ainda mantém em momentos especiais. Mas estes eram os concorrentes locais. Depressa chegaram as grandes marcas internacionais, “os homens de Itália”, como refere o comendador, “a Segafredo e a Buondi, que era um nome português, mas feito pela Nestlé. Deixaram-nos com a boca a saber um pouco mal, mas não me rendi. O que eles faziam como grande empresa, eu, com uma empresa pequena, fazia melhor. Dava menos, mas não faltava com os valores certos na hora certa”. Como? “A parte mais profunda que tenho do nosso negócio é sonhar, pensar que vou mesmo para a frente, caminhar. E sonhar como fazer clientes no dia-a-dia para eles continuarem a ser nossos e não se desviarem”.
O 25 de Abril veio ajudar. “Ficámos com a fronteira de Portugal e Espanha totalmente liberta. Arranjei coutos em Espanha e, durante dois ou três anos seguidos, metia na carrinha 200 clientes, todos os fins-de-semana. Esta foi outra grande vitória que tive. E eu não era caçador. Mas punha os outros a caçar, era diferente. Foi outra parte do trabalho que se fez, de forma espontânea, e que só terminou quando já não havia coelhos e lebres para caçar. Ainda custou umas coroazinhas”, acrescenta.
De boas contas
“Mas as minhas contas estão sempre com o saldo à vista. Dou porque depois vou ganhar. Facilito. Distribuí, mas contava com aquilo que ficava para nós. Haveria receio se, de facto, fosse um homem dispendioso. Sou um homem económico. Sou um homem que quer viver e deixo viver os outros. Essa é outra grande arma que tenho nesta vida: ser um grande exemplo para muita gente é saber-se trabalhar para nós próprios, mas também saber trabalhar para os outros; termos o nosso, mas permitir que os outros também tenham. Infelizmente, pouco há. A pessoa que tem esse sentimento e que o usa – ainda hoje uso –, o êxito é absoluto.” E é nesse sentido que recorda que, se o cliente é importante, o funcionário não pode ficar atrás. Quando tinha já 200 pessoas a trabalhar para si, decidiu oferecer viagens aos seus: “Íamos em oito autocarros até Lisboa e, depois, avião a caminho da Madeira, dos Açores e das Canárias. Fizemos isso umas dez vezes, as pessoas vinham a sonhar. Ainda hoje sonham com aqueles dias… Sempre fui um empresário que influencia a minha forma de estar com as pessoas porque ajudo muito a nossa terra. Ainda hoje é uma bandeira que tenho que é vigorosa e forte.”
Campo Maior, como todas as terras alentejanas naquele tempo, era parca de recursos, recorda Rui Nabeiro. “Hoje é uma terra boa, mas naquela altura era ruim, com falta de meios e fracas condições de habitabilidade”, e o facto de ser a sede dos Cafés Delta chamou a atenção de potenciais compradores. Durante a apresentação da nova máquina, o comendador assumiu que houve muita gente a querer comprar a Delta. “Quando me procuraram, era gente com muito capital e sobrava bastante daquilo que me iam pagar. Mas disse sempre: vender, não. Não foi uma, duas, quatro, cinco ou seis vezes. Foram sempre estrangeiros. A minha mulher chegou a dizer: ‘Mas se não vendes, porque é que estás a chatear os senhores?’ ‘Porque preciso de saber o nível da nossa marca.’ Ficava sempre com mais noção. Eles davam o dinheiro que pedisse. Ouvia-os, mas da minha parte não levaram nada”, remata.
Transição geracional
“Familiarmente há paz e, onde há paz, o resto aparece”, eis o princípio do comendador, válido para dentro e fora de casa. Com a nova geração já bem presente no grupo, esse foi um avanço consciente. “Hoje, com os meus 91 anos, já dei um passo que poucos são capazes de dar. Já distribuí para os filhos e para os netos o potencial desta casa. Porque fiz isso? Comecei a compreender que os filhos e os netos também já teriam gozo em participar e não dizerem apenas que são empregados do avô. Muita gente diz que já tenho muitos anos. Tenho, mas não estou cansado. Se Deus me chamar, eu vou. Mas, se não me chamar, eu continuo cá. A minha capacidade é esta mesmo. Por isso, fizemos a nossa escritura. Eles têm e eu oriento. O capital coube a todos.” Homem prático e reconhecidamente generoso, Rui Nabeiro fala deste momento com muita firmeza: “Esta é mais uma passagem na vida. Por serem poucos os que têm essa capacidade, a mim vai-me trazendo força e consideração das pessoas. Já está feito. Quando pensamos as coisas, faz-se e mais nada. Foram precisas algumas semanas para orientar, organizar a papelada, e mais nada.” Pára e reflecte para acrescentar: “Pensei nos meus porque são meus. Mas também penso nas pessoas que não são minhas, mas que são meus amigos e que são capazes de puxar por mim. Não é contra mim, é por mim. Casos desses, tenho inúmeros.” Por isso, o seu legado passa também por aí, pela afinidade que aqueles que têm o seu ADN possam transmitir à sua volta: “Tenho netos que são dedicados à empresa e estou feliz. São formados, quando o avô só fez a quarta classe. Têm uma boa receptividade no mercado, e na população em geral também são queridos. Podia dizê-lo por vaidade, por serem meus netos, mas é a verdade.” Verdade ou vaidade, também por Alice Nabeiro, a mulher por trás deste grande homem. Juntos desde a primária, um namoro que começou a ser magicado entre os professores de ambos, nos primórdios das salas mistas: “Foi aí que nos encontrámos e fizemos a nossa vida. A minha mulher é uma grande senhora porque me deixou trabalhar. Não criou problemas. Eu ia muito a Lisboa à procura de clientes e de algum café que o mercado tinha para venda avulso, assim como ia também para Angola, para Timor ou para a Europa, onde sabia que havia mercados abertos onde podia comprar. Se era preciso ir comigo, se fazia gosto em ir para conhecer, ia, mas não perturbava o meu trabalho. Ia com o motorista ver montras ou outra coisa por que se interessasse. Se não desse jeito para almoçarmos juntos, almoçava com o motorista.” Não esconde a emoção de uma vida em comum ou, como diz, a sua verdadeira arma, e não esconde tão-pouco que “o nosso dinheiro esteve sempre junto, não havia mealheiro de parte a parte. Alice esperava sempre que o marido levasse o melhor possível para casa. Foi sempre uma companheira de primeira linha, nem todos os homens têm essa felicidade”.
“Sou um homem de Angola, voltado para Angola”
Disse, em tempos, que o que o fez ser o homem do café foi o café de Angola. O comendador sorri e explica. “Naquele tempo, o café que tínhamos era só o café de Angola, que vinha a cada 15 dias. Havia uns restos de café de Timor, que chegava cá tardiamente. Havia um tráfego mensal. Sabíamos onde ir comprar e havia brokers que estavam instalados, com escritórios em Lisboa, junto dos fazendeiros. Queríamos ir comprá-lo a outro lado e não deixavam. Tínhamos uma guilhotina que ninguém podia ir comprar. Éramos obrigados a consumir café de Angola porque era o que aparecia com facilidade, que trazia dinheiro para Portugal e Angola. Tinha a ver com a nossa balança comercial.”
Mas o 25 de Abril veio mudar este paradigma. “A guerra entre Portugal e Angola não tinha sentido nenhum para mim. O 25 de Abril trouxe paz – não tanta assim, porque o país continuou em guerra – e alguma proximidade. Quando acabou o problema da guerra, face às dificuldades, os portugueses vieram para cá. Mas eu não, fui para lá. Metia-me num aviãozinho, marcava o café e as pessoas iam-me enviando. Fazia reservas na casa desses armazéns. Um dia, quando estava a passar para apanhar o avião para Angola, houve um colega que me perguntou para onde ia. Quando percebeu, disse-me que eu não estava bom da cabeça porque aquilo – Angola – era um pandemónio”. Ri e contraria: Angola está no seu coração. Instalava-se sempre no antigo Hotel Turismo, os recepcionistas tratavam-no como amigo e, se “almoçava bem, jantava melhor. Não tinha problemas. Com o 25 de Abril, fui daqueles que mais beneficiaram. Nessa altura, trouxe o café que podia trazer, num barquinho que alugámos a uns gregos porque os barcos portugueses estavam na baia de Luanda sem poderem sair. Não havia outro transporte. De avião, ficava mais caro que o café. Nem trouxe a carga que queria trazer, mas também não havia mais para comprar”. Essa é também a fragilidade de hoje, conta o comendador, com alguma mágoa: “Se pudesse usar ainda mais café de Angola, usava, mas estão a produzir pouco. Estamos a substituir esse café pelo do Vietname e temos o vizinho ali ao lado a concorrer, o actual Congo.” A empresa em Luanda, a Angonabeiro, comercializa não só os cafés Delta como outros produtos alimentares, porque, como reitera, “comecei muito cedo a ir para Angola a querer fazer um trabalho próprio. Carregava o café. Fiz a vida com Angola por ser um café que ainda hoje está no nosso blend. Fui e sou um homem de Angola, voltado para Angola. Sou um homem de Angola, por isso lá estamos a fazer o nosso comércio e a vender os nossos produtos”. Atento à actualidade política, não fechou o assunto sem dizer que “pode ser que, agora, as coisas melhorem, depois do entendimento do Governo com a UNITA”.
Visão de Portugal
Também foi político. Antes do 25 de Abril foi nomeado por duas vezes presidente da Câmara Municipal de Campo Maior, em 1962 e 1972, cargo que voltaria a exercer em 1977, já eleito por sufrágio universal, e onde permaneceu até 1986. “Sempre fiz política municipal e ainda hoje me convidam para fazer um discurso à malta”, recorda, lembrando que tem de haver muito conhecimento prático para se fazer política. “Neste momento, Portugal precisava de uma coisa muito simples: mais união entre as forças políticas. Aquilo que penso, enquanto cidadão, seria construirmos primeiro o país, com as carências que existem, e depois, então, fazer política. Essa política certamente nos traria benefícios. Guerras políticas entre partidos não levam a sítio algum. E ninguém vai ficar bem. É preciso que tenhamos esperança de que as coisas possam caminhar. Se não arranjarmos esperança suficiente, amor por aquilo que estamos a viver, nada vai acontecer. Por isso, não andemos a discutir. Vamos construir, que é o que se faz numa empresa: construir.” E quando olha para trás? “Não há arrependimentos, porque acreditei sempre naquilo que faço. Não há nada melhor do que ser um optimista. Há pessoas que são derrotistas; eu, essa palavra, nunca a usei, nem a sei usar nem viver. É sempre a esperança. Eu, ainda hoje, com quase 92 anos, procuro a ambição, o sonho, o saber ir…”
Neste momento, o Grupo Nabeiro, nascido enquanto grupo em 1988, conta com mais de duas dezenas de empresas em áreas tão distintas como a alimentação, imobiliário, indústria e serviços, distribuição, turismo e restauração. Mas o café é a alma do grupo.