Quando imaginamos “revoltas de agricultores” lembramo-nos das Jacqueries medievais, das revoltas dos camponeses, como a Grande Jacquerie, em França, no tempo da Guerra dos Cem Anos. Guillaume Callet, que ficou para a História como Jacques Bonhomme, bem que não queria encabeçar a revolta, mas foi forçado pelos insurretos a fazê-lo e acabou mal, às mãos de Carlos de Navarra, de justo cognome Carlos, o Mau, que coroou o rei dos camponeses revoltosos com coroa de ferro incandescente.

Os nobres chamavam Jacques aos camponeses, por usarem um casaco curto, a jacquette, atada na cintura. A revolta de 1358 veio ano e meio depois da derrota dos franceses em Poitiers, quando o rei de França foi feito prisioneiro pelos ingleses e, em Paris, o preboste dos comerciantes tomou conta do governo da cidade. Conta-nos Froissard que os camponeses em cólera se comportaram como “cães raivosos”, matando os nobres e suas famílias com requintes de malvadez. E os nobres vingaram-se, com a preciosa ajuda do Mau.

Em 1381, são os camponeses ingleses, chefiados por Wat Tyler, a revoltar-se por causa dos impostos. Depois de várias depredações, foram também duramente reprimidos. Com a Reforma luterana, em 1524, foi a vez de os camponeses alemães se revoltarem, guiados por Thomas Münzer. A repressão, exemplar na brutalidade, teve o apoio de Lutero, que não gostava de insurreições populares, facto que Engels recordaria em 1850, em Der deutsche Bauernkrieg.

Tempos modernos
Há revoltas de agricultores mais próximas de nós: em 1907, no Sul de França, os produtores de vinho do Roussillon e do Languedoc levantaram-se contra a importação de vinhos estrangeiros e o uso e abuso de açúcares na preparação do vinho. Os vinicultores queixavam-se das importações da Argélia, protegidas pelo governo de Paris, e Marcelin Albert, vinicultor e lojista de grande popularidade, criou uma Comissão de Defesa Vinícola, na aldeia de d’Argeliers.

As manifestações foram chegando a centenas de milhares de pessoas, em toda a região do Midi e falou-se mesmo de uma secessão do Sul de França. O primeiro-ministro Clémenceau mandou 30 mil homens para reprimir os manifestantes, que chegaram a mais de 600 mil; e, num astuto golpe de teatro, recebeu Marcelin Albert, queimando-o (aqui em sentido figurado) perante os seus pares.

Também nos Estados Unidos, no último quartel do século XIX, os agricultores, perante a subida de preço dos utensílios e o endividamento com o comércio local e caminhos-de-ferro, lançaram-se numa batalha da produção para cumprir essas obrigações, criando uma crise de sobreprodução, que resultou na queda dos preços dos seus produtos. Daí que se começassem a organizar politicamente no Sul e no Midwest, com as Farmer Alliances, criando o Partido Populista ou do Povo, que chegou a apresentar candidatura presidencial, em 1892. Os populistas culpavam os magnatas dos caminhos-de-ferro e os bancos pela crise.

Contra Bruxelas Hoje, as revoltas de agricultores estendem-se por toda a Europa e têm por alvo os governos nacionais e centros de comando da União Europeia. A atual revolta começou na Alemanha e propagou-se a França, com os rebeldes a marcharem sobre Paris. Bruxelas, a “sede do Mal”, da entidade reguladora e distribuidora de leis e de fundos, também foi alvo de visita, em grande estilo, dos agricultores e das suas máquinas.

Agora estão em movimento ou barricando estradas nos Países Baixos, na Bélgica, na Alemanha, em França, na Polónia, em Itália, em Espanha, na Grécia e em Portugal. Protestam contra os entraves que as importações de fora da Europa e alguma histeria verde na corrida à “salvação do planeta” impõem ao sector.

Na Europa, o número de explorações agrícolas tem vindo a cair rapidamente. O declínio, acelerado pela pandemia, é mais visível nas pequenas explorações, sendo que 30% das unidades agrícolas são agora dirigidas por agricultores com mais de 65 anos. Cerca de metade das mais de 9 milhões de explorações ativas na Comunidade situa-se na Roménia e na Polónia, ainda que as maiores e mais rentáveis se encontrem em França.

Os agricultores europeus queixam-se da concorrência desleal exterior à União Europeia, do dogmatismo das regras ambientais e sua aplicação, da subida de custos dos fertilizantes e da tirania da grande distribuição. A estas ameaças, junta-se a redução dos apoios e subsídios à Agricultura, como a que ocorreu na Alemanha, para ajudar a tapar um défice de 17 biliões de euros no Orçamento de 2024. Na sequência, em meados de janeiro, 30 mil agricultores invadiram Berlim. Paris também sofreu uma invasão no fim de janeiro e Bruxelas foi invadida a 1 de fevereiro.

O maior receio dos manifestantes é o Acordo UE-Mercosul que trará produtos da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Os gregos queixam-se de desastres naturais e colheitas perdidas; os romenos e outros leste-europeus das importações de cereais da Ucrânia; e os italianos, irlandeses, espanhóis e portugueses também protestam, mas em menor escala.

Os media, ávidos de conspirações e nervosos com os progressos daquilo a que chamam “extrema-direita”, não se cansam de descobrir sinistras ligações, vendo nas reivindicações dos agricultores a mão dos partidos nacionalistas.

É certo que nas direitas conservadoras e tradicionalistas persiste uma romantização do campo e dos seus encantos, da caça, da pesca, de uma ligação à natureza visceral e antiga, tão bem descrita por Roger Scruton, mas daí à manipulação dos protestos vai grande distância. Distância que os agricultores lesados querem, muito justamente, manter. Dos partidos de direita ou de quaisquer outros.

Professor e historiador

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 17 de fevereiro