Não sabemos o que mais terá contribuído para que António Costa, o mais habilidoso político que passou por Portugal na última década e meia, tenha abandonado o mantra a que se agarrou desde que teve de lidar com a herança que José Sócrates deixou ao PS. Foi com o “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política” que, de uma penada, Costa e o PS acabaram – pelo menos durante uns anos – com a mera ideia de responsabilidade política em Portugal. Viagens pagas pela Galp a secretários de Estado num governo PS? Golas inflamáveis compradas a empresas de familiares? Membros da mesma família (e não política, família de sangue mesmo) sentados à mesma mesa no Conselho de Ministros? Ministros apanhados a mentir, ao parlamento e à comunicação social? Um ex-primeiro-ministro envolvido em casos de corrupção? Para tudo isto foi preciso mais do que certezas sobre o caso, foi preciso uma acusação formal ou uma lei a indicar expressamente (e, muitas vezes, apenas uma lei impermeável a leituras alternativas mais simpáticas) uma irregularidade.

Mas entretanto, algo mudou. A ex-secretária de Estado do Tesouro Alexandra Reis saiu em fevereiro/março de 2022 da TAP com uma indemnização negociada e paga pela sua entidade empregadora. Tudo legal. Alguns poderão considerar imoral que uma empresa sob ajuda do Estado, que recebeu 3,2 mil milhões de euros dos contribuintes e que despediu 1.200 pessoas pague meio milhão de euros a uma administradora com a qual não quer contar. Mas até ver foi legal. E também, como se viu com alguns ministros mais próximos (ou até com Miguel Alves, o seu secretário de Estado adjunto), mereceria o conforto acolhedor do mantra de António Costa: “À justiça o que é da justiça”. Não mereceu. Mas esteve perto. O primeiro-ministro ainda pediu à Inspeção-Geral das Finanças que investigasse o pagamento da indemnização (ou que descobrisse alguma irregularidade) e, inevitavelmente, o Ministério Público abriu um inquérito-crime. Sem conclusão nem acusação formada, o ministro das Finanças correu com Alexandra Reis.

Agora veio o caso de Carla Alves. O primeiro-ministro jurou a pés juntos no parlamento que a secretária de Estado da Agricultura não fez nada de errado, isto além de ter sido um pouco pateta por não se ter apercebido que, enquanto casal, pagava um IRS abaixo do dinheiro que entrava na conta conjunta com o marido, esse sim sob investigação. Carla Alves também saiu, tendo cumprido um pouco mais de um dia desde a tomada de posse.

Algo, de facto, mudou. Até a ministra da Agricultura está sobre pressão por alegadamente ter sabido do caso judicial que arrastou a sua secretária de Estado. Não sabemos o que fez cair o mantra, a mais de uma dezena de demissões desde que formou uma maioria absoluta, se o veneno das flechas certeiras vindas do Palácio de Belém, de um Marcelo Rebelo de Sousa que parece ter acordado com a quebra de popularidade nas sondagens. Algo mudou, e António Costa, o político mais habilidoso que passou por São Bento na última década e meia, até está a tentar enredar Marcelo, convidando-o a atestar (previamente) a validade dos membros do Governo cuja escolha compete, em exclusividade, ao primeiro-ministro. É preciso ter lata.