A saída de Joana Marques Vidal da PGR, substituída por Lucília Gago, foi vista como a forma que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa teriam encontrado para trocar uma procuradora-geral forte por alguém mais discreto. Agora que a PGR meteu os pés pelas mãos, a teoria foi por água abaixo. A procuradora revelou-se incapaz de gerir uma investigação, para já muito desastrada, que fez cair o governo. Pior: ficámos a saber que o último parágrafo do célebre comunicado que tornou públicas as suspeitas foi escrito pela própria Lucília Gago.

O disparate, à primeira vista, não podia ser maior: inquéritos há muitos, até porque em vários casos decorrem de uma obrigação legal quando estamos perante possíveis crimes públicos. Ou seja, incluir António Costa no enredo, tornando público o que não tinha de o ser, nem deveria ser, revelou uma de duas coisas: ou um estado de analfabetismo político gritante – a PGR não avaliou o risco de fazer cair o governo, judicializando a política – ou, então, o desejo proibido de atingir esse objetivo.

Não acredito na primeira nem na segunda explicação. Há uma terceira hipótese mais viável: Lucília Gago temeu que, guardando o segredo, ele acabasse por ser filtrado para os jornais por uma das habituais toupeiras; então, jogou-se a ela e ao país inteiro para a fogueira. A sua maior responsabilidade não é, portanto, o maldito parágrafo, foi o deixar andar tudo até se tornar imparável.

Já aqui escrevi que os factos descritos naquele comunicado, excluindo o tal último parágrafo, seriam mais do que suficientes para que o primeiro-ministro apresentasse a demissão. A história recente do PS, em particular na última década, não permitia a António Costa outra escolha senão afastar-se para que a justiça pudesse funcionar, e o PS talvez sobreviver a esta crise existencial. Acontece que, hoje, sabemos mais: sabemos que a investigação tem poucos factos sólidos, é globalmente fraca e é de difícil prova.

Cheira, portanto, a retumbante fracasso. Claro, se em vez do juiz de instrução que tomou conta do caso – já viram como é saudável não ser uma estrela mediática? – fosse Carlos Alexandre a ter nesta fase processual a última palavra, então, a história talvez fosse outra. O país teria parecido um tugúrio de bandidos e patifes irreformáveis. Embora especulando tendo por base as decisões que Carlos Alexandre tomou, arrisco escrever que não seria surpreendente que fosse decretada prisão preventiva para vários dos intervenientes neste caso e o crime de corrupção não teria ido para a sarjeta. É uma hipótese.

Eu não penso que o Ministério Público seja um fruto podre. Tenho a certeza de que há muita gente competente, séria e bem-intencionada. Penso o mesmo dos juízes de instrução. A dicotomia Carlos Alexandre, o justiceiro, e Ivo Rosa, o mãos-largas, era tão-só o choque de duas personalidades e perfis técnicos radicalmente opostos com um poder que é muito, muito espinhoso controlar. Como sempre, penso que faltou moderação – essa qualidade tão em desuso – aos dois; e faltou uma boa gestão dos juízes do Ticão, tantas vezes reduzido a um ou dois juízes. Acontece que pelo meio se abriram muitas feridas que nos fizeram chegar aqui, a este lamentável espetáculo.

Alguém falou em república dos juízes? Pois é, o filme (real) passou-se em Itália nos anos 90 e deixou sequelas gravíssimas. Sérgio Moro, no Brasil, fez o mesmo caminho alucinado, com a supimpa cara-de-pau de até chegar a ministro.

A separação de poderes exige um esforço permanente. Não é instinto ou tendência natural. A nossa jovem democracia revela-se ainda institucionalmente fraca e com demasiadas pessoas saudosistas do radicalismo de outros tempos, seja ele de esquerda ou de direita, para resistir a estas tentações. O facto de os magistrados do Ministério Público estudarem no mesmo sítio onde estudam os juízes, além de terem uma preponderância absurda na coreografia da sala de tribunal – não estão na posição em que se encontram os advogados de defesa, estão ao lado do juiz… -, é apenas mais um pequeno sinal da confusão de papéis e funções a que nos cabe sobreviver.

E agora? Agora temos um candidato do PS que a direita receia pela tendência claramente de esquerda, designadamente na área económica; e temos um candidato de direita que parte da direita considera não estar à altura. Tudo com os cumprimentos de uma equipa de investigação em roda livre.

Consultor

Artigo publicado na edição do NOVO de 18 de novembro