O sector agrícola foi surpreendido, no final da semana passada, com a notícia de que os pagamentos das medidas de apoio ao Modo de Produção Biológico e à Produção Integrada iriam ter cortes expectáveis de 35% e de 25%, respetivamente. Pela dimensão dos cortes, percebe-se a dimensão da surpresa.

No entanto, para muitos dos meus amigos que não estão relacionados com o sector e a quem perguntei se tinham ouvido alguma notícia sobre este escândalo, isto passou completamente despercebido. Na verdade, isto parece-lhes chinês e, estando nós em período eleitoral, achavam ser mais uma queixa dos agricultores para obterem mais uns apoios do Estado.

A única notícia sobre agricultores que conheciam eram as relacionadas com as manifestações em França e na Alemanha. Alguns deles até me transmitiram que percebiam as reivindicações desses agricultores, relacionadas com a perda de competitividade económica devido a excessivas restrições ambientais, limitações regulamentares e/ou dificuldades de mercado. Confesso que até me fez alguma confusão estarem mais preocupados com a realidade francesa e alemã do que com a realidade nacional.

Mas voltando ao problema nacional, e tentando explicar o problema de forma mais clara: como já tive oportunidade de escrever nesta coluna, os apoios da Política Agrícola Comum (PAC) garantem, a todos os cidadãos europeus, um abastecimento fiável, e em quantidade suficiente, de alimentos seguros, produzidos de forma sustentável e a preços acessíveis. A atual arquitetura de apoios resultou de um processo histórico complexo mas que permite contribuir para a soberania alimentar e para a sustentabilidade económica, social e ambiental da Europa.

O ano de 2023 foi o primeiro ano de aplicação da última reforma da PAC, que introduziu muitas alterações ao modelo que estava em vigor e conduziu à necessidade de muitas explorações, sobretudo as que estão mais dependentes do recebimento destas ajudas para sobreviver, terem de se “ajustar” a prioridades definidas pelo Ministério da Agricultura. Convém recordar que em Portugal, devido ao facto de 85% da nossa superfície agrícola útil ser de sequeiro, muitas explorações não têm alternativas produtivas rentáveis exclusivamente pelo mercado. 

Uma dessas prioridades, e talvez a mais vezes anunciada, era a aposta no aumento da área em modos de produção sustentáveis (que em “linguagem agro” se refere, não apenas mas também, ao Modo de Produção Biológico e à Produção Integrada). As ambiciosas metas nacionais relacionadas com essa aposta, na resposta ao desafio do Pacto Ecológico Europeu, foram apresentadas com muito orgulho pelos nossos governantes, em Bruxelas e em Portugal.

Os agricultores aderiram, no início de 2023, de forma massiva a estes regimes de produção sustentáveis. Esta adesão implicou um conjunto de custos acrescidos, nomeadamente associados a assistência técnica, a sistemas de certificação e ou a investimentos de adaptação das explorações. Além disso, estes regimes de produção implicam, na sua maioria, uma perda de produtividade e um acréscimo dos custos de produção, por exemplo, na aquisição de alimentação biológica para os animais. Estes “custos de contexto” são bastante relevantes. Ou seja, os agricultores assumiram, e pagaram, compromissos na expectativa do recebimento de um apoio que lhes foi prometido. Agora, no início de 2024, quando o pagamento já deveria ter ocorrido há uns meses, foram confrontados com um corte que, associado a um crescimento generalizado dos custos de produção, coloca em causa o equilíbrio e a rentabilidade, sempre frágil, de muitas explorações agrícolas.

Em termos orçamentais, o apoio ao Modo de Produção Biológico representa um montante (com financiamento 100% comunitário, é importante frisar) de, aproximadamente, 75 milhões de euros, e o apoio à Produção Integrada um montante aproximado de 55 milhões de euros.

A adesão dos agricultores a estas medidas conduziu a um valor total de “candidaturas” de cerca de 120 milhões de euros no Modo de Produção Biológico e de 75 milhões de euros na Produção Integrada, ou seja, a um montante total superior (em 65 milhões de euros) ao total que estava afeto a estas medidas. Por muito que possam existir alguns ajustamentos resultantes de “excedentes” de medidas com menor adesão, existirá sempre uma diferença superior a 60 milhões de euros em falta.

Estes números já eram do conhecimento do Ministério da Agricultura há bastante tempo e nada foi feito para minimizar o impacto ou resolver o problema.

A forma, impreparada e amadora, como foi feita a comunicação e o momento de fazer o anúncio, coincidente com um momento de forte contestação por parte dos agricultores europeus em muitos países, foram a gota de água. Durante os últimos dias assistimos a um movimento cívico de contestação por parte dos agricultores, e tudo aponta para que vá piorar. Mesmo sabendo que não é o momento político certo, porque faltam interlocutores. Nasceu de forma genuína e apartidária, e espero que assim se mantenha.

Talvez por receio de movimentos parecidos com outros países europeus, assistimos (escrevo este texto no final do dia 31 de janeiro) a uma conferência de imprensa da ministra da Agricultura e do ministro das Finanças a anunciarem um pacote de financiamento extra para o sector e ao anúncio da intenção de pedido de autorização, à Comissão Europeia, de afetação de verbas do Orçamento do Estado português para fazer face à diferença de montantes nos apoios. Exatamente os mesmos para os quais, dias antes, tinham sido anunciados cortes drásticos.

Acho que esta gota de água fez o copo transbordar. E pelo que estamos a ver parece-me difícil que, no curto prazo, qualquer gotinha de água não se transforme numa inundação…

Engenheiro agrónomo

Artigo publicado na edição do NOVO de 3 de fevereiro