Um casal apaixonado vai de férias para o Rio de Janeiro e, numa noite, depois de jantar fora, decide regressar a pé ao hotel. E nessa “minúscula e completamente irrelevante” decisão, os dois estão indecisos se o caminho mais curto para regressar ao hotel será pela esquerda ou pela direita. “E, aí, a história divide-se. E é muito também sobre as pequenas decisões, a que não damos importância, mas que podem mudar tanto o rumo da nossa vida”, explica a autora de A Cicatriz.

Editado pela Suma de Letras, chancela do grupo Penguin, o novo livro de Maria Francisca Gama chegou às livrarias a 19 de fevereiro e aborda uma história “intensa e dura”, relatada na primeira pessoa, com a Cidade Maravilhosa como pano de fundo.

Maria Francisca Gama revela ao NOVO que a obra foi inspirada tanto na música e na literatura brasileira que consome quanto numa viagem recente ao Rio de Janeiro. A sua intenção, ao início, era mostrar aos leitores apenas o lado bom da sua “cidade preferida”: queria que eles sentissem “o crocante do pastel” e ouvissem “o vendedor da praia a apregoar o Biscoito Globo”. Porém, ao longo da escrita foi querendo abordar o Rio que conhece em plenitude, o que acarreta também um estado de “constante alerta, do ‘não andes sozinha à noite’, ‘não andes a pé à noite’ e todas as histórias que vamos ouvindo”. 

A Cicatriz é sobre a condição de ser mulher, não em todas as coisas maravilhosas que também, felizmente, vivemos enquanto mulheres, mas principalmente no receio constante e mais ou menos homogéneo de que, sozinhas, estamos mais em perigo do que se fôssemos um homem”, revela a autora. Adiciona ainda que “é um elogio ao Brasil, mas não é um elogio cego, porque o Brasil – e o Rio de Janeiro em particular – também tem problemas. E é também um livro sobre esta questão das decisões pequeninas que têm repercussões maiores”. Para a escrita, a autora recorreu a múltiplas fontes e verificações de estatísticas e relatos de mulheres que foi encontrando online. 

Natural de Leiria, Maria Francisca Gama publicou já os livros Em Troca de Nada (2013) e Madalena (2015), pela editora Chiado, e A Profeta (2022), também editado pelo grupo Penguin. Do seu ponto de vista, a literatura “tem um papel revolucionário, de socialização e (…) de alguma maneira, de ativismo”. 

A autora pertence ainda ao Clube das Mulheres Escritoras, uma organização de aproximadamente 20 autoras, publicadas em editoras tradicionais. Formado em 2023, o clube pretende, “acima de tudo, contribuir para que o mercado literário seja mais inclusivo, mais igualitário, e que mais mulheres possam não só escrever, mas não sintam que as portas lhes estão fechadas por serem mulheres”. Quanto ao seu público, declara ser “lida maioritariamente por mulheres, nomeadamente porque nós, mulheres, somos fãs de mulheres e de homens, mas os homens só são fãs de homens. Também sou lida por alguns homens, mas creio que menos”, diz. 

Recentemente, lançou o podcast A Cicatriz e utiliza as redes sociais com frequência para tentar converter público que não lê a tornar-se leitor. “Aquilo que tenho tentado fazer no meu trabalho nas redes sociais é mostrar que a leitura pode dar prazer e que há um livro para cada um.” 

“A leitura não tem sido encarada nos últimos anos, em Portugal, como uma coisa propriamente sexy, dado o lugar que ocupamos no ranking dos países que menos leem na Europa”, afirma a escritora, complementando que a tiragem menor dos livros em Portugal acaba por se refletir numa produção mais cara dos mesmos. 

Maria Francisca Gama lamenta que a literatura seja o “parente pobre” da cultura em Portugal e, tendo em conta que estamos em período eleitoral, sugere aos futuros representantes que os livros passem a ser taxados como bem essencial, visto que o preço atual torna o produto “proibitivo” para certos leitores. 

“Se continuarmos a fazer as coisas exatamente da mesma maneira, é difícil esperar resultados diferentes”, conclui.

Editado por Joana Petiz

Artigo publicado na edição do NOVO de 2 de março