Convenção de Istambul é o nome comummente atribuído à Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, por ter sido negociada e assinada nesta cidade. Portugal ratificou-a em 2013 e ela entrou em vigor em 2014.

Mas não se julgue que o facto de termos estado entre os primeiros Estados a aderir a este tratado internacional significa que a nossa conduta em matéria de prevenção e combate à violência contra as mulheres, nas suas mais variadas formas, seja exemplar, estando aliás bem longe disso. Basta lembrar que, só em 2022, morreram em Portugal, em contexto de violência, às mãos dos seus companheiros e ex-companheiros, 24 mulheres e duas crianças.

Mas o tema sobre o qual hoje me debruço neste Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres é uma outra forma de violência sexista e patriarcal: a violência sexual. Com exceção do homicídio, a violação é talvez a mais grave expressão da violência contra as mulheres – aquela em que, de forma mais gritante, o nosso corpo é coisificado e tratado como simples veículo para a satisfação dos desejos sexuais e da vontade de poder de quem nos vê como infra-humanas. Vale a pena recordar que, na Europa, a esmagadora maioria das vítimas de violação são mulheres. E isto de entre os casos denunciados, que se estima corresponderem a apenas 10% dos crimes de violação efetivamente ocorridos.

No que à tipificação dos crimes contra a liberdade sexual diz respeito, Portugal está em situação de incumprimento da Convenção de Istambul há uma década – desde que esta entrou em vigor, em 2014 – quanto a dois aspectos: aquele que deve ser o elemento central deste tipo penal (a falta de consentimento) e a natureza jurídica (pública) destes crimes. Vamos então por partes.

Falta de consentimento

Relativamente ao primeiro aspecto, o artigo 36.º da Convenção de Istambul estipula que os crimes contra a liberdade sexual tipificados nas ordens jurídicas dos Estados contratantes devem estar centrados na falta de consentimento da vítima.

Isto parece evidente à primeira vista, mas na verdade não é tanto assim. Ainda hoje, a imagem que culturalmente associamos a uma violação é a de um ataque numa viela escura em que a vítima é obrigada, por meio de violência, a ter relações sexuais não desejadas com um desconhecido. A vítima luta bravamente contra o seu agressor, mas é vencida pelo poderio físico deste, que acaba por dominá-la e violá-la com brutalidade.

A realidade é, no entanto, as mais das vezes muito distinta desta imagem hollywoodesca: a esmagadora maioria dos agressores faz parte das relações familiares ou de proximidade das vítimas, sendo apenas 9% dos agressores desconhecidos da vítima. Acresce que, quando não é exercida violência física pelos agressores – “apenas” manipulação psicológica ou a ameaça mais ou menos velada de violência física –, a vítima demora muitas vezes vários anos a sequer tomar consciência de que foi violada.

Existe também, na psique coletiva, um arquétipo da vítima ideal: aquela que lutou até ao limite das suas forças para defender a sua honra e que depois chora muito ao relembrar aquilo por que passou. A realidade é, mais uma vez, muito distinta disto: a maioria das vítimas relata ter reagido com passividade durante o ataque, para evitar maior violência, e muitas falam mesmo em dissociação, recordando a sua violação como um momento em que se sentiram fora do próprio corpo, como que observando de fora aquilo que lhe estava a acontecer. As emoções de uma vítima de violação são complexas e difíceis de processar, não havendo uma forma correta ou sequer típica de esta se comportar durante ou após o crime. Nem sempre temos vítimas que choram convulsivamente: muitas sentem vergonha ou mesmo nojo de si próprias, sentindo-se de alguma forma culpadas do que lhes aconteceu.

Ora, estas ideias feitas sobre o que é uma violação e sobre como se devem comportar as vítimas deste crime prejudicam gravemente estas últimas, revitimizando-as, e comprometem até a própria investigação criminal, que é muitas vezes inquinada por intervenientes pouco sensibilizados para a realidade do que é um crime sexual e de como reage ou se comporta uma vítima.

A este propósito, vale muito a pena ver o primeiro e segundo episódios da série Unbelievable, da Netflix: no primeiro, vemos dois homens embebidos de todos os preconceitos sobre como deve comportar-se uma vítima de violação e que, com a sua falta de empatia para com ela, comprometem de forma quase irreparável a descoberta da verdade (o fim último do processo penal); no segundo, acompanhamos uma mulher que, tendo recebido formação específica para lidar com este tipo de crimes, respeita o tempo e a intimidade da vítima, não a faz repetir-se vezes sem fim e, sobretudo, não tem ideias feitas sobre como ela deveria reagir ou comportar-se, ouvindo empaticamente aquilo que lhe é relatado e acompanhando-a no seu próprio percurso de tomada de consciência do que lhe aconteceu.

Como vimos no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a lei pode (e deve) ser pedagógica e, estando um passo à frente desta, conduzir a sociedade a repensar as suas ideias feitas, promovendo assim o progresso coletivo no sentido de sermos uma comunidade jurídica mais justa e mais humana. Centrar os crimes sexuais na simples falta de consentimento teria, assim, efeitos muitos benéficos em termos de diminuição do sofrimento e vitimização secundária das vítimas, ao consciencializar a sociedade para a complexidade dos crimes sexuais.

Não obstante esta obrigação clara a que o Estado português se obrigou, por via da ratificação da Convenção de Istambul, de fazer da falta de consentimento a pedra de toque dos crimes contra a liberdade sexual, o crime de violação continua, no Código Penal português (artigo 164.º), a depender da existência de violência, ameaça grave ou constrangimento da vítima. É evidente que a violência não é nem pode ser irrelevante neste contexto, devendo ser uma circunstância agravante da violação e demais crimes sexuais, mas não deve – nem pode, diz a Convenção de Istambul – ser condição sine qua non para que estejamos perante uma conduta punível penalmente.

Além de perpetuar ideias erradas sobre o que é uma violação, esta desconformidade com a Convenção de Istambul tem ainda uma consequência prática muito concreta e inultrapassável: deixar de fora do leque dos crimes sexuais tipificados condutas que constituem um grave atentado contra a liberdade sexual das vítimas.

É o caso do stealthing, que consiste na remoção não consentida do preservativo durante o ato sexual. Esta conduta não se enquadra em nenhum dos crimes contra a liberdade sexual tipificados na lei portuguesa, porquanto não existe no stealthing qualquer violência, ameaça grave nem constrangimento da vítima, que quis aquela relação sexual. Simplesmente, condicionou o seu consentimento à utilização de um preservativo. Retirá-lo significa, pois, agir sem o seu consentimento, pelo que, à luz da Convenção de Istambul, tem de ser uma conduta penalmente punível. Contudo, o princípio da legalidade determina que nulla poena sine lege – não há pena sem lei –, pelo que, no ordenamento jurídico português, não é possível punir tal conduta. Há um vazio legal que deixa as vítimas de stealthing totalmente desprotegidas.

A este propósito, Teresa Pizarro Beleza deixa uma interrogação muito pertinente: se o crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190.º do Código Penal) apenas pressupõe a falta de consentimento da vítima (não a violência, a ameaça ou o constrangimento), devemos então concluir que entrar sem consentimento na casa de alguém é mais grave do que entrar sem consentimento no seu corpo? A resposta negativa parece óbvia, mas o facto é que o legislador penal português continua sem corrigir esta grave incongruência valorativa da nossa lei penal, para mais em clara violação da Convenção de Istambul.

Recentemente, as denúncias de inúmeros casos de stealthing no universo do jazz português geraram finalmente movimentações na sociedade civil para alterar este estado de coisas, estando aberta a assinaturas uma petição que visa criminalizar o stealthing. O PAN apresentou também um projeto-lei para criminalizar esta conduta. Eppur si muove

A este propósito, importa realçar que, contrariamente ao que recentemente defendeu Leonor Caldeira , o stealthing não é enquadrável no crime de coação sexual (artigo 163.º do Código Penal), porquanto, tal como no caso da violação, esbarramos também aí com o obstáculo literal inultrapassável da necessidade de existência de “constrangimento”. Por muita vontade que tenhamos de punir este grave atentado contra a liberdade sexual, não vale tudo num Estado de Direito. E o sentido normal das palavras é mesmo a extensão máxima possível da interpretação em direito penal, que não admite interpretação extensiva, mesmo se conforme a norma de direito internacional, como é o caso do artigo 36.º da Convenção de Istambul. Ora, o dicionário diz-nos que “constrangimento” corresponde a “violência que tira liberdade de ação; acanhamento, embaraço; uso da violência física contra uma outra pessoa; coação”. Está bom de ver que nada disto existe no stealthing: a vítima quis, talvez até entusiasticamente, aquela relação sexual. Subordinou o seu consentimento à utilização de um preservativo e essa condição foi desrespeitada pelo agressor, que o retirou sem o seu consentimento, mas sem exercer sobre ela qualquer constrangimento. É, pois, na ausência de consentimento que tudo se joga. A lei penal portuguesa tem, sim, de ser revista.

Importa também ter presente que, em Portugal, até 1982 (data do primeiro Código Penal saído do pós-revolução), a violação entre cônjuges não era crime: assinar um contrato de casamento com alguém era, assim, uma espécie de termo de autorização permanente para avanços sexuais. No fundo, era a concretização em letra de lei da ideia retrógrada de que a boa esposa tem de estar sempre disponível para satisfazer sexualmente o seu marido.

O caminho que fizemos desde então neste campo é importante e meritório, mas atavismos de séculos pagam-se. E as mulheres do nosso país continuam a pagar esse preço, um preço demasiado alto. O conceito de consentimento ainda é uma coisa muito nebulosa para demasiadas pessoas. A este propósito, vale sempre a pena recordar a brilhante analogia do chá.

Natureza jurídica do crime

Passemos agora ao segundo ponto relativamente ao qual Portugal está em claro incumprimento da Convenção de Istambul: a natureza jurídica dos crimes contra a liberdade sexual. Atualmente, a violação é, em Portugal, um crime semipúblico, o que significa que a sua investigação e julgamento estão dependentes da apresentação de queixa por parte da vítima, no prazo de seis meses.

No entanto, o artigo 55.º, n.º 1, da Convenção de Istambul dispõe o seguinte: “As Partes assegurarão que as investigações ou o processamento das infrações (…) não dependam inteiramente de uma denúncia ou de uma queixa da vítima (…) e que o processo possa prosseguir mesmo que a vítima retire a sua declaração ou queixa”.

Portugal tem-se refugiado no advérbio «inteiramente» para defender a conformidade da lei portuguesa com este preceito. De facto, em 2019, a redação do artigo 178.º do Código Penal foi alterada, de forma a prever que o Ministério Público possa dar início ao procedimento penal “sempre que o interesse da vítima o aconselhe”. Significa isto que o crime de violação pode ser investigado e punido em Portugal se a vítima apresentar queixa, ou se o Ministério Público assim o entenderO paternalismo desta solução legal, que dá ao Ministério Público o poder discricionário de decidir se é ou não do interesse da vítima perseguir penalmente quem a violou, é evidente. O patriarcado surge aqui materializado num Estado paizinho que decide pela tolinha da vítima o que é melhor para ela.

Esta cosmética legislativa de 2019 não altera, no entanto, o facto de que estamos em claríssima violação da segunda parte do citado artigo 55.º, n.º 1, da Convenção de Istambul – “As Partes assegurarão (…) que o processo possa prosseguir mesmo que a vítima retire a sua declaração ou queixa” –, visto que o procedimento penal termina se a vítima desistir do mesmo. É da natureza dos crimes semipúblicos que assim seja: compete à vítima apresentar queixa, podendo dela desistir se assim o entender. Dê-se as voltas que se der em torno do advérbio inteiramente para procurar contornar a Convenção de Istambul, a verdade insofismável é que Portugal está em clara violação do artigo 55.º, n.º 1, deste tratado internacional, uma vez que o procedimento penal por violação termina se a vítima desistir do processo.

Tem-se argumentado, quanto a este ponto, com a ideia da proteção da autonomia e da intimidade da vida privada da vítima, dizendo-se condescendentemente que não se deve obrigar alguém a reviver um trauma contra a sua vontade.

A esta argumentação, falsamente feminista, há que responder, antes de mais, que cumprir ou não a Convenção de Istambul não está no arbítrio do legislador português. Vale aqui o princípio pacta sunt servanda – os acordos são para cumprir –: se o Estado português ratificou de boa fé a Convenção de Istambul e não formulou qualquer reserve àquele preceito, não lhe resta outra hipótese senão cumpri-lo, por muito que dele possa discordar.

Mas, mais importante do que este argumento talvez um pouco legalista, importa salientar que a solução legal que hoje temos nada tem de feminista. Sob a falsa capa da proteção da autonomia e da intimidade da vida privada da vítima, o argumento da revitimização por via do processo penal é pouco convincente, estando inquinado por uma petição de princípio. Ao pretender poupar a vítima da vergonha que esta possa sentir por vir a saber-se que foi violada, estamos no fundo a usar a discriminação milenar de que as mulheres são vítimas para perpetuar essa mesma discriminação, mantendo sobre este crime um manto de vergonha e de silêncio. Ora, a lei penal deve contribuir para colocar a vergonha onde ela efetivamente pertence: na esfera de quem violou e não de quem foi violado.

Como tão bem disse Gisèle Pélicot, “Il faut que la honte change de camp! – “É preciso que a vergonha mude de lado!”.

Tornar a violação um crime público significa precisamente libertar as vítimas do ónus de apresentarem queixa para que se faça justiça, reconhecendo-se assim que o bem jurídico em causa – a liberdade sexual – é de tal forma precioso que o crime de que foram vítimas agride não apenas as próprias, mas a comunidade como um todo. De resto, a investigação e julgamento de crimes contra a liberdade sexual ou de violência doméstica têm sempre natureza confidencial, não se vislumbrando qualquer razão para que não seja também assim relativamente ao crime de violação de pessoa adulta. Não é por se tratar de um crime público que os detalhes da violação sofrida serão discutidos na praça pública.

Falar no risco de revitimização por via do processo penal é também, como bem lembra Clara Sottomayor, escamotear que o Estado tem para com as vítimas obrigações muito claras: prestar-lhes apoio psicológico e legal; formar policiais, procuradores, juízes e advogados capazes de lidar corretamente com os crimes sexuais; afastar o agressor da vítima. Fugir a estas responsabilidades, escudando-nos numa suposta proteção da vítima, é por isso hipócrita e cobarde.

Na verdade, protegeremos as vítimas de violação no dia em que transmitirmos aos agressores a mensagem clara de que não toleramos a violação e lhe fazemos uma guerra sem quartel – é este o sentido último da natureza pública de um crime. Trata-se de dizer que, enquanto comunidade jurídica, consideramos que não foi apenas a vítima a ser violentada na sua dignidade e autonomia corporal com aquela violação, mas que esse dano nos foi feito a todas e a todos e que, por isso, assumimos coletivamente a responsabilidade de punir aquela conduta, não pondo sobre os ombros da vítima a responsabilidade exclusiva de fazer justiça.

Acresce que esta mesmíssima argumentação de alegada proteção da intimidade da vítima foi usada durante muitos (demasiados) anos para negar a natureza pública ao crime de violência doméstica. O tempo veio provar que esta argumentação estava errada e o facto de a violência doméstica ser hoje um crime público é absolutamente essencial para a proteção das vítimas.

Além disso, existe atualmente uma incompreensível discrepância valorativa na lei penal, que qualifica os mesmos factos como crime público ou semipúblico consoante a idade da vítima ou em função da relação prévia que esta tenha, ou não, com o agressor. Atualmente, se a vítima for menor, o crime será sempre público, por ser enquadrável no tipo penal de abuso sexual de menores. Se o agressor for alguém próximo da vítima, poderemos estar no âmbito do crime de violência doméstica, também ele público. Cabe então perguntar: por que motivo uma pessoa adulta violada por um desconhecido é menos merecedora de proteção pela comunidade? Não vislumbro nenhuma razão atendível para esta discriminação em função da idade da vítima ou da identidade do seu agressor. Considero, assim, existir na lei penal uma clara violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da nossa Lei Fundamental.

Da mesma forma, o argumento da proteção da autonomia corporal da vítima também não colhe, pois ninguém é forçado, num Estado de direito, a submeter-se a exames médicos em que não consinta. Sugerir o contrário é uma aberração jurídica, uma ofensa aos profissionais de saúde e constitui, em última análise, um espantalho argumentativo.

Importa ainda ter em conta a elevada probabilidade de repetição do crime. Uma vez que apenas uma ínfima parte dos crimes de violação é denunciada, os estudos internacionais divergem no apuramento de dados concretos; porém, a taxa de repetição é considerada elevada. Um violador solto é, assim, um violador que fará, muito provavelmente, novas vítimas. Desta forma, torna-se imperativo contrabalançar a relutância que a vítima possa eventualmente sentir em reviver o crime de que foi vítima com os fins de prevenção geral e especial das penas, no sentido de impedir a repetição do crime pelo mesmo agente e desencorajar, de um modo geral para toda a comunidade, a prática deste tipo de crimes.

O que acontece neste momento é que a proteção das potenciais vítimas futuras é completamente escamoteada, em nome de uma alegada proteção da vítima atual contra uma putativa revitimização, pois que o desencadeamento do processo penal depende exclusivamente da apresentação de queixa por parte desta ou daquilo que o Ministério Público entenda ser o interesse da vítima. Daqui resulta que o interesse das potenciais vítimas futuras e o interesse geral da comunidade em protegê-las não é, em nenhum momento e de nenhuma forma, tido em conta. Esta solução é profundamente desequilibrada e injusta.

Assim, parece-me evidente que o Estado deve, em primeira linha, cumprir o seu dever constitucional de formar profissionais capazes de estar à altura das exigências específicas da investigação deste tipo de crimes, formando polícias, advogados, procuradores, juízes e profissionais de saúde empáticos, conscientes das particularidades dos crimes sexuais e capazes de contribuir para a descoberta da verdade sem revitimizar quem já tanto sofreu.

Enquanto este desígnio não puder ser plenamente alcançado, deve ser reservado às vítimas o direito de não colaborarem na investigação e julgamento do crime, se assim o entenderem. Pese embora o efeito terapêutico que comprovadamente tem esta sua reclamação de agência sobre o que crime de que foram vítimas, deve ser-lhes, em última análise, reservado o direito de não reviverem essa experiência se não o desejarem, devendo ser expressamente excluídas do âmbito de aplicação do crime de desobediência se se recusarem a prestar declarações enquanto testemunhas, para que não restem quaisquer dúvidas a este respeito.

Por último, importa salientar que embora a prova pericial e o testemunho das vítimas sejam elementos de prova muito importantes no âmbito dos crimes contra a liberdade sexual, não serão sempre e em todos os casos os únicos meios de prova disponíveis, podendo existir outra prova testemunhal ou mesmo documental (vídeos de videovigilância, por exemplo). À luz da lei portuguesa, estes meios de prova não chegam sequer a poder ser utilizados se a vítima não der o necessário impulso processual, com a apresentação de uma queixa no prazo de seis meses.

Assim, em última análise, deve ser reconhecido à vítima o direito de não colaborar na investigação e julgamento do crime, mas esta não deve ter o poder de impedir o Estado de perseguir esse crime por outros meios que estejam à sua disposição, pois devem entrar aqui em linha de conta os fins de prevenção geral e especial das penas. Esta é a solução mais equilibrada e justa para este conflito de direitos, pois permite proteger tanto a autodeterminação da vítima quanto a comunidade em geral.

Houve já vários projetos de lei sobre esta matéria a ser votados na Assembleia da República – do Bloco de Esquerda, da Iniciativa Liberal e até da então deputada não inscrita Cristina Rodrigues, entretanto convertida ao reacionarismo do Chega. Acabaram todos chumbados ou simplesmente engavetados.

É esta contínua inação, esta tolerância obscena para com a cultura da violação que verdadeiramente revitimiza as e os sobreviventes de crimes sexuais. Imagine-se o que sentirão as pessoas que vivem com este trauma ao ver que, continuamente, as deixamos sozinhas a lidar com ele? (E depressinha, que seis meses passam a voar!) Que preferimos perpetuar a cultura da vergonha e do silêncio? Que achamos que o que lhes aconteceu é um problema exclusivamente delas e não nosso também? É absolutamente insuportável que Portugal ainda seja este país em pleno século XXI! A Convenção de Istambul, mas sobretudo as e os sobreviventes, exigem mais. As mulheres e as meninas do nosso país merecem mais.

Combatamos, pois, a cultura da violação nestes dois aspetos muito concretos, até porque tal nos é imposto por uma convenção internacional que assinámos e ratificámos. Façamo-lo neste Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, e todos os dias, até que algo finalmente mude!

Jurista na Comissão Europeia, escrevendo a título pessoal