A habitação é um direito constitucionalmente garantido aos cidadãos; por isso mesmo, apresenta-se simultaneamente como dever estatal. Os moldes em que ambas as premissas se efetivam, no entanto, são ora insuficientes na aplicação, ora estreitas desde a sua conceção. Eis porquê.

Em teoria, compete ao Estado (entre várias outras coisas) programar e executar a sua própria política de habitação viável, promover a construção de habitação social e estimular a construção privada.

A programação de políticas de habitação tem sido manifestamente insuficiente por se basear historicamente em gestão do estado corrente e não em ação proativa. A execução de uma política que por si só não pretende necessariamente tirar projetos do papel é uma execução completa, mas vazia.

Já muito se discutiu a questão da conjuntura financeira para a aplicação de medidas em Portugal, o pós-Troika e o contexto pandémico para desculpar a inação do governo socialista neste âmbito. A questão da conjuntura serve de motivo para justificar grandes investimentos quando é favorável, não para os desincentivar em completo quando a situação se encontra frágil.

Afinal, investimento público extensivo não é estrangeiro ao PS, quando José Sócrates foi líder de um governo quase keynesiano (talvez em demasia) em termos de políticas públicas. Política é feita de escolhas e algumas têm custos de 3,2 mil milhões de euros – a título de exemplo entre tantas outras –, que podiam ser aplicados na reabilitação do parque habitacional português.

Claro que a conjuntura económica favorável facilita a expansão das capacidades de ação do Estado. Daí que a entrada na Comunidade Europeia tenha facilitado a verdadeira revolução estrutural levada a cabo por Cavaco Silva; daí a minha esperança de melhoria com a disponibilização dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência para os próximos anos: voltando, aliás, ao âmbito das garantias constitucionais, a proteção especial dos jovens em matéria de acesso à habitação tem vindo a ser consideravelmente melhorada.

O problema, no entanto, mantém-se: o tal estímulo da construção privada tem favorecido tendencialmente “o grande capital”. A construção de novos fogos e a revitalização de imóveis são muitas vezes acompanhadas de gentrificação e descaracterização social por serem maioritariamente destinados para compradores de classe média-alta ou superior. À falta de oportunidades privadas no mercado – que, por razões de negócio, desenvolvem a sua atividade para o setor mais economicamente desenvolvido da sociedade –, o Estado não tem conseguido oferecer soluções de base para o problema.

E tanto em termos institucionais como em termos de mentalidade popular, o foco singular da construção estatal na habitação social apresenta-se como um problema. Além de representar o estreitamento da classe média e da polarização social, passa uma mensagem de pressuposto lógico (falacioso) com que os portugueses não se querem identificar: o Estado ajuda os mais necessitados e, portanto, se o Estado me ajuda, eu pertenço a esta demográfica.

Receber ajuda do Estado não é vergonha nenhuma e recebê-la é, aliás, parte das razões por que o Estado existe. Mas o espetro da necessidade não é binário: não existem somente os “coitadinhos” e os que não precisam de qualquer apoio. A maior parte da população portuguesa encontra-se algures no meio. Toda a habitação social é pública, mas nem toda a habitação pública é social.

Assim o é em grande parte do mundo, o que muda são as mentalidades. Em Viena, uma das cidades mais ricas da Europa, mais de metade dos habitantes estão alojados em propriedades públicas com rendas consideravelmente menores do que em Lisboa. Por mais que o programa austríaco ofereça “somente” rendas acessíveis e apenas muito raramente a possibilidade de compra do ativo, é o suficiente para resolver muitos dos seus problemas de habitação.

O alegado binário das necessidades leva-nos até aqui. Naturalmente, as prioridades são diferentes quando se trata do setor público e do setor privado: um procurará maioritariamente o lucro e o outro procurará maioritariamente a resolução de um problema social, mas nenhum dos dois, em certa medida, é mutuamente exclusivo. Nem todo o lucro é imoral, nem todo o prejuízo é necessário. O investimento em habitação pública acessível é absolutamente essencial a longo prazo, especialmente para aqueles que são geracionalmente azarados. Que as políticas públicas neste sentido não sejam apreciadas enquanto restrição à liberdade dos que mais liberdade têm, mas à elevação dos padrões-base do futuro.

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais