A ciência política tem-nos ensinado que, durante as primárias, os candidatos tendem a apelar às suas bases eleitorais. Contudo, uma vez nomeados, é habitual que se desloquem para o centro político. Exemplo emblemático disto é o de Ronald Reagan, que venceu as primárias de 1980 com o apoio fervoroso dos conservadores, mas, após garantir a nomeação, escolheu George H. W. Bush, antigo adversário centrista, para seu vice-presidente. Conduziu, assim, a sua campanha contra Jimmy Carter com o objetivo de conquistar os centristas, que viriam a ser conhecidos como Reagan Democrats.

A campanha de Kamala Harris distingue-se por várias razões na era moderna. Nomeada apenas em julho, não teve de percorrer o caminho habitual de mais de um ano na estrada para conquistar a base democrata. Concorrendo nas primárias de 2020 como uma progressista de São Francisco, foi escolhida por Joe Biden para equilibrar o ticket democrata, precisamente para atrair a ala mais à esquerda. Durante essa campanha, Harris assumiu posições que, se mantidas na atualidade, a colocariam em desacordo com o eleitorado médio e, sobretudo, dificultariam a sua vitória nos swing states. As suas posições anteriores têm sido alvo de ataques por parte dos republicanos.

Embora Harris já tivesse abraçado as políticas centristas de Biden, agora, mais do que nunca, está claramente a apelar aos moderados. Talvez para conquistar os republicanos anti-Trump, simplesmente por acreditar que a vitória eleitoral exige posições menos radicais ou, ainda, porque terá alterado algumas das suas convicções. Seja qual for a razão, esta evolução torna-a uma candidata mais apta, mas também mais propensa a ataques.

Na primeira entrevista desde que foi nomeada, acompanhada por Tim Walz, Kamala Harris viu-se obrigada a justificar as suas mudanças de posição em temas sensíveis, como a imigração ilegal ou a proibição do fracking, uma técnica de extração energética considerada poluente, mas vital para a economia de estados como a Pensilvânia.

No que toca à imigração, a sua resposta foi relativamente satisfatória, ao recordar o seu passado como procuradora-geral da Califórnia, onde combateu as máfias que fomentam a imigração ilegal, além de destacar o seu apoio ao pacote legislativo negociado este ano no Senado entre republicanos e democratas, que acabou por ser rejeitado após ordens de Donald Trump, que considerou que tal medida prejudicaria a sua estratégia de campanha. No entanto, a sua defesa de que “não mudou de convicções” não foi particularmente convincente, sobretudo se considerarmos as suas explicações.

Se os republicanos criaram grandes expectativas negativas em torno da entrevista de Kamala Harris, pode-se afirmar que a vice-presidente superou o teste. Não cometeu erros embaraçosos nem proferiu declarações controversas, como ocorreu noutros momentos da sua carreira. Embora não tenha sido uma entrevista brilhante, Harris mostrou-se eficaz e relativamente à vontade, mesmo perante questões mais complexas. Destacou-se particularmente na defesa apaixonada de Joe Biden e do seu legado, demonstrando lealdade e distanciando-se do radicalismo dos republicanos MAGA. Harris quase ignorou Donald Trump, preferindo focar-se no contraste entre a sua visão e a abordagem republicana.

Ao manifestar a intenção de convidar republicanos para a sua administração, Harris enviou mais um sinal aos conservadores anti-Trump, ciente de que precisará desses eleitores. No entanto, há aspetos a melhorar: as justificações para as suas mudanças de opinião não foram satisfatórias ou conclusivas e a proposta de virar a página dos últimos dez anos carece de maior profundidade. Não é convincente defender essa ideia quando esteve na Casa Branca nos últimos quatro anos.

Além disso, Harris tem evitado discutir as suas posições políticas e o seu programa eleitoral, mas, eventualmente, terá de fazer discursos temáticos que delineiem com clareza a sua plataforma. Normalmente, este tipo de discurso ocorre antes deste período final da campanha, mas será necessário que Harris fale mais concretamente sobre as suas propostas. Também precisará de sair mais vezes da sua zona de conforto, realizando mais entrevistas e conferências de imprensa. Os indecisos vão querer saber mais.

Por fim, o ponto mais negativo desta entrevista foi a prestação de Tim Walz. Talvez por não estar habituado ao foco nacional, mostrou-se inconsistente nas explicações sobre o seu passado militar e a sua história pessoal de luta contra a infertilidade. Embora tenha começado a campanha de forma promissora, a sua atuação na CNN foi dececionante. Resta saber se conseguirá redimir-se ou se ficará marcado por este desempenho.

Especialista em política norte-americana