Citius, Altius, Fortius. Mais rápido, mais alto, mais forte. Este é o lema dos Jogos Olímpicos e, na sua generalidade, o lema que encabeça o desporto. Mais do que isso, no entanto, representa indiretamente outra questão: a dualidade da vitória que contém, dentro de si, a derrota também – o triunfo representa sempre a superioridade de um atleta sobre os seus pares.

Por esse mesmo motivo, o desporto sempre foi político e sempre foi utilizado para esses fins. Espelha a suposta grandiosidade de regimes políticos e das nações onde estes se inserem relativamente a regimes e nações inferiores; é palco de confronto diplomático. A um nível mais íntimo, o desporto apresenta-se também como uma extensão (quase instintiva) de um modo de viver primitivo, em que sobrevivia somente o mais rápido e o mais forte. A facilidade com que o desporto se torna tribalizado provém desta dupla intervenção na mente individual (do cidadão) e na mente coletiva (da nação).

A mente coletiva foi influenciada nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, cujo propósito desportivo minguou quando comparado com o propósito político de propaganda nazi e de ideologias de superioridade racial. Foi influenciada em 1972, quando Bobby Fischer, americano, e Boris Spassky, soviético, mediram forças em partidas de xadrez que poderiam ter sido jogadas em tabuleiros de Risk, tamanho foi o confronto intelectual entre as duas maiores potências mundiais. Foi influenciada nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, quando a China se “apresentou ao mundo” enquanto grande potência, saíndo legitimado o seu regime, interna e externamente.

Este tipo de episódio não acontece somente a cada 36 anos. Acontece diariamente, em níveis diferentes. O papel do desporto na legitimidade política – ou, pelo menos, a sua contribuição para que a legitimidade política não seja posta em causa – é assoberbante.

Daí que o futebol tenha sido instrumentalizado no Estado Novo, juntamente com fado e Fátima, para propósitos de união nacional. Daí que os Mundiais de 2018 e 2022 tenham sido realizados na Rússia e no Qatar por motivos extradesportivos. Daí que um quarto das corridas de Fórmula 1 este ano se realizem em países com regimes ditatoriais sem grande tradição em desporto motorizado. Daí que todas as listas a Associações de Estudantes deste país proponham grandes torneios inter-turmas.

Líderes e atores políticos importam-se com o desporto em parte porque o desporto tem peso político em si. É uma arma de mobilização e moral com potencial infindável. O que me leva ao ponto onde realmente queria chegar: Imane Khelif.

A lutadora argelina nasceu mulher, foi criada mulher e nunca isso foi posto em causa até isso ser politicamente viável. Em 2023, Khelif foi desqualificada do Campeonato do Mundo pela Associação Internacional de Boxe, cuja maioria das operações funciona em território russo, cujo presidente tem fortes ligações ao Kremlin e cujo maior patrocinador é a Gazprom. Coincidentemente (ou não), a argelina tinha acabado de vencer a Azalia Amineva, lutadora russa até então invicta. Além de Khelif, também foi desqualificada a taiwanesa Lin Yu-ting, sem que tenha sido dada qualquer explicação plausível para tal, quando ambas participaram nas Olimpíadas de Tóquio sem que fosse levantada qualquer questão – o que me leva, naturalmente, a crer que a única verdade a ter em conta é a verdade política de quem se deseja impor.

Mesmo sem contexto adicional – que deveria ser dispensável, mas é pragmaticamente necessário – é de loucos crer que a Argélia, país onde qualquer tipo de desvio da heteronormatividade é ilegal, aceitaria sequer uma atleta transgénero. O que Angela Carini fez, independentemente das suas intenções, que desconheço, foi abrir caminho a uma onda politicamente carregada de indignação, mascarada de integridade e de respeito pela verdade desportiva. A mente individual acaba por ser influenciada por quem instrumentaliza a sua narrativa neste tipo de acontecimentos, não por amor ao desporto ou por integridade, mas por quem deseja através dele alimentar a discórdia e a desunião que só pode vir de uma opinião pública fabricada.

E quem fabrica ou manipula esta opinião pública importa. Num mundo cada vez mais polarizado (também neste sentido), há que escolher como politizamos o desporto ou como permitimos que o politizem por nós. Não será por acaso que o lema olímpico foi atualizado em 2021 para incluir a palavra “Communiter” (Juntos); será sempre essa a minha visão do desporto. A exaltação da excelência humana, da queda gradual dos limites impostos à espécie, da celebração da diferença e da liberdade humana intrinsecamente ligados à moralidade, à verdade e à cooperação. Por razões mais que óbvias, também é esta a minha visão da sociedade.

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais