Já lá vai o tempo que a distribuição de processos judicias era feita manualmente, fosse através de recurso à tômbola ou a outro qualquer outro meio vetusto! A distribuição automática de processos é uma realidade consolidada no nosso ordenamento jurídico, anterior ao CPC de 2013.
Em 2021, na sequência de supostas irregularidades na distribuição de processos de natureza penal, foram aprovadas a Lei n.º 55/2021 e a Lei n.º 56/2021, que vieram prever novos mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais e dos processos da jurisdição administrativa e fiscal, sendo estes regimes regulamentados pela Portaria n.º 86/2023. De acordo com as regras instituídas por aqueles diplomas, passou a ser necessário reunir diariamente, em todos os locais onde ocorre distribuição, um conjunto de operadores da justiça para assistir ao ato da distribuição, que até aqui dispensava, na maioria dos casos, qualquer intervenção humana, e elaborar uma ata à qual é anexado o resultado da distribuição.
Tal procedimento não alterou, no entanto, a natureza eletrónica da distribuição dos processos judiciais, a qual é efetuada através do eTribunal, o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, não sendo, portanto, aplicável à distribuição de processos a regra de que não se praticam atos processuais nos dias em que os tribunais estiverem encerrados, nem durante as férias judicias.
As férias judiciais repartem-se em três momentos diferentes: (i.) de 22 de dezembro a 3 de janeiro, (ii.) do domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e, no período mais alargado, (iii). de 16 de julho a 31 de agosto. Nestes períodos, apenas se tramitam os processos considerados urgentes, como, por exemplo, providências cautelares, processos de insolvências e processos especiais de revitalização de empresas, processos de impugnação da regularidade e licitude do despedimento ou processo de promoção e proteção de menores. Os demais processos judiciais, ditos comuns, vêm os seus prazos suspensos durante as férias judiciais, não sendo, consequentemente, tramitados.
Não obstante, o Conselho Superior da Magistratura, em reunião de plenário de 10.05.2023, deliberou, face à entrada em vigor das alterações à Portaria n.º 280/2013, divulgar uma recomendação genérica no sentido de que durante os períodos de férias judiciais não se praticam actos de distribuição ordinária uma vez que, não sendo automáticos, estão sujeitos ao regime do artigo 137.º/1 do Código de Processo Civil.
Pese embora se descortine a razão de ser de tal deliberação, não poderá deixar de se considerar que tal recomendação é, em partilhar, contrária às normas de distribuição de processos, às normas da citação que, nos termos da lei, tem lugar mesmo durante as férias judiciais, e outro conjunto de normas de natureza processual e civil. É consabido que a citação, ato que apenas pode ocorrer após a distribuição dos processos, tem importantíssimos efeitos substantivos e adjetivos. Entre outros efeitos, a citação faz cessar a boa-fé do possuidor contra quem tenha sido proposto ação a reivindicar a coisa possuída e interrompe a prescrição. Não havendo distribuição, pergunta-se como se tramitam os processos em que é requerida a citação urgente? No que respeita aos efeitos adjetivos, a citação torna estáveis os elementos essenciais da causa e inibe o réu de propor contra o autor ação destinada a apreciar a mesma questão jurídica.
Segundo os dados disponibilizadas pelo DGPJ/MJ, PORDATA, em 2023, existiam 1734 Juízes em Portugal, dos quais cerca de 1300 magistrados judicias nos tribunais de 1.ª Instância! Para assegurar a distribuição ordinária de processos, seria, porventura, perspicaz, por um lado, reforçar o número de juízes de turno, ou, por outro, calendarizar as férias dos magistrados de modo assincrónico.
Outra solução viável para assegurar a distribuição ordinária de processos judiciais passaria por se considerar que, em cada período e zona da Comarca, os Senhores Juízes que estão de turno ao serviço urgente, estariam, igualmente, de turno à distribuição, considerando-se esta solução como a mais adequada, na medida em que, para além do mais, não compromete, o gozo de férias por parte dos Senhores Juízes.
Em tempos que se fala tanto da falta de meios na justiça, e, sobretudo, na falta de condições de carreira dos senhores funcionários judiciais que, justamente, lutam pelos seus direitos, melhor teria sido – não se entrando aqui na discussão da automaticidade da distribuição para efeitos do artigo 137.º do CPC – que o Conselho Superior da Magistratura viesse rever a sua recomendação genérica, deliberando, ao invés, e de forma expressa, que a distribuição de processos não suspende em férias judicias. Em setembro, teremos os Tribunais congestionados em distribuições, citações e demais atos preliminares nos novos processos, atrasando-se o normal e regular tramitação dos novos e dos antigos processos, com danos, muitas vezes, incomensuráveis para os cidadãos e para a Justiça. Tal posição contribuirá ainda para um potencial aumento de incidentes nos processos quanto aos efeitos da citação, o que, inevitavelmente, provocará maiores atrasos nos processos e um custo acrescido para o Estado na administração da Justiça.
Em suma: por vezes, não se trata de ter mais recursos para se fazer mais, nem substituir a tômbola por inteligência artificial; poderá trabalhar-se para uma justiça mais célere e justa como se impõe num Estado de Direto democrático, utilizando-se os recursos existentes de forma mais eficiente.