A atuação de alguns deputados na audição de Daniela Martins – a mãe das gémeas” –, na comissão parlamentar de inquérito (CPI) foi simplesmente vergonhosa. A falta de humanidade e capacidade para se colocar no lugar do outro foi por demais evidente.

O próprio propósito da CPI é estranho e confuso. Existe um bom relatório da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS). O caso encontra-se igualmente a ser investigado pelo Ministério Público. Esta comissão nunca iria acrescentar nada de útil e novo a este caso, o que se verifica na prática pelo muito circo e barulho que se ouve. Afinal, o objetivo da extrema-direita era precisamente esse.

O que já sabemos sobre este caso? O IGAS confirma que não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso à consulta de especialidade. No entanto, também fica claro que este benefício foi redundante, pois a consulta desmarcada nos Lusíadas poderia permitir a referenciação à consulta no Hospital de Santa Maria, nos termos da Portaria 147/2017.

O relatório do IGAS afirma também que todo o restante processo decorreu sem irregularidades. A autorização do Infarmed decorreu dentro dos padrões previstos e de forma idêntica à aplicada a uma outra criança tratada no mesmo período. Igualmente importante, tratando-se de uma consulta sem tempo de espera, o acesso das gémeas não significou o atraso no acesso a nenhuma outra criança.

Este caso poderia servir para ilustrar e aprofundar dois problemas na saúde e na sociedade em geral. Primeiro, a permeabilidade do serviço público de saúde a favores políticos. Os responsáveis políticos pelo setor devem garantir o acesso universal aos cuidados de saúde de qualidade, não devem ser mensageiros ou executores de favores a particulares. Para o SNS funcionar bem e ter a confiança das pessoas, precisa de estar imune a estas pressões.

Em segundo lugar, este é um bom exemplo do absurdo dos preços praticados pela indústria farmacêutica. Quem trabalha na indústria sabe bem que não há justificação plausível para cobrar mais dois milhões de euros por qualquer medicamento. Tanto assim é que o SNS conseguiu negociar o preço, acabando por adquirir as três doses a um preço bem inferior, embora não revelado por acordos de confidencialidade. O próprio segredo dos valores envolvidos cria uma assimetria de informação que favorece a indústria, garantido uma enorme vantagem em futuras negociações.

Não se trata apenas, no entanto, de quem está na indústria. A própria academia tem estudado este fenómeno, onde a as farmacêuticas investem mais em recompra de ações e pagamento de dividendos do que em investigação e desenvolvimento. São os acionistas e não a saúde de todas e todos nós quem está a ser realmente beneficiado por este modelo.

O complexo médico-industrial dá prioridade ao lucro de curto de prazo, alimenta-se de fundos públicos e não devolve à comunidade o investimento realizado pelos impostos. Uma CPI realmente preocupada com os problemas da saúde teria debatido como criar mecanismos que corrijam este erro. Mas isso seria pedir muito a quem só está na Assembleia da República pelo circo mediático. Em vez de debates e soluções, tivemos soundbytes estéreis para TikTok.

Enfermeiro da Urgência Pediátrica e coordenador da Unidade de Saúde Pública Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca