Antes do debate de 27 de junho, escrevi nesta coluna que ninguém podia descartar que, “se Biden colapsar ou tiver momentos embaraçosos, haverá ainda tempo para os democratas afastarem o presidente e arranjarem outro candidato. Seria caótico para o processo eleitoral, mas haveria tempo antes da Convenção Nacional Democrata, no final de agosto, em Chicago. E, quem sabe, ser benéfico para as perspectivas do partido”. Era uma hipótese remota, mas, ainda assim, pensei na altura que seria possível. E aqui estamos, com Kamala Harris pronta para enfrentar Donald Trump.

Num mês, tudo mudou. Muito aconteceu. Nos livros da história americana, este será um período fértil. Um debate desastroso para o presidente recandidato; um partido desesperado que conspira para afastar o presidente nomeado; uma tentativa de assassinato a um antigo presidente candidato do partido adversário; uma nomeação republicana do mais jovem candidato a vice-presidente desde Richard Nixon, em 1952; e, por fim, desistência do presidente da corrida eleitoral e a rápida nomeação da sua impopular vice-presidente como candidata. Muitos e bons livros serão escritos sobre este mês, que mudou realmente a campanha presidencial de 2024.

Se Joe Biden tivesse desistido antes, dificilmente Kamala Harris seria a nomeada democrata. Com uma taxa de popularidade inferior à do presidente, foi desprezada, ao longo de quatro anos, pelos operacionais democratas e pelos media. Podem tentar reescrever a história, mas Kamala foi uma vice-presidente ineficaz e desrespeitada.

O próprio Biden nunca a considerou como sucessora e não foi por acaso que, depois da débâcle do tema da imigração, logo no início do mandato, nunca mais lhe deu grandes responsabilidades. Certos círculos atestam mesmo que foi por considerar que ela não poderia vencer Donald Trump que Biden se recandidatou. Tudo mudou depois do desastre do debate de junho. Se antes Biden era considerado demasiado frágil e inapto por alguns – não só republicanos – para ser presidente, depois do debate, a América inteira percebeu que já não tinha condições. Começaram aí as pressões para a que desistisse.

As elites democratas perceberam: ou apostavam em Kamala Harris ou não conseguiriam afastar Trump da Casa Branca. Biden foi encurralado pelo próprio partido, pelos amigos e pelos aliados. Resistiu algumas semanas, mas sucumbiu. Ao desistir, fez questão de passar a liderança à sua vice-presidente.

Kamala Harris nunca seria candidata sem este processo. Mas tem agora a possibilidade de ser a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo da nação. Concorre contra um antigo presidente extremamente impopular. Condenado judicialmente e repleto de fragilidades, Trump estava convencido de que seria eleito. Contra o Crooked Joe e, depois da tentativa de assassinato, estava tão confiante que até escolheu um clone trumpista de 39 anos para candidato a vice-presidente. Mas, com Kamala Harris, a corrida agora é outra. O Partido Democrata carregou no reset button.

Especialista em política norte-americana