A música brasileira Lívia Mattos, que atuou na aldeia alentejana de Porto Covo quando o dia de hoje começava, reconhece que ser mulher e acordeonista “é um lugar de revolução, de resistência”.
O acordeão “é um instrumento ainda muito estigmatizado, como um instrumento masculino” e, por isso, ser sanfoneira – é assim que no Brasil nomeiam as acordeonistas – é um símbolo de empoderamento feminino.
“As pessoas se surpreendem muito”, observa, explicando que a música que faz resulta da identidade de ser nordestina e baiana, mas também de vários “cruzamentos”. Nesse sentido, a “música de aventura” que o Festival Músicas do Mundo propõe “tem muito a ver” com o que faz.
A cultura, sublinha Lívia Mattos, citando Gilberto Gil, “não é extraordinária, ela é ordinária, é como arroz e feijão, ela tem que estar no prato todo o dia”.
Mas não é só nisso que a sanfoneira concorda com o ex-ministro da Cultura e um dos expoentes máximos da música popular brasileira. Gilberto Gil também diz que “o povo sabe o que quer e o povo também quer o que não sabe”.
Por isso, o papel da cultura é “oferecer para o povo” e servir os desfavorecidos e os excluídos. “Claro que ainda existe uma estrutura, um sistema (…), grande parte da verba da cultura acaba indo para pessoas que já têm muito dinheiro, mas eu acho que a nossa ação e projetos como esse buscam justamente como a gente democratiza o acesso a essas outras subjetividades”, contrapõe.
Lívia Mattos quer “pensar outros Brasis, de outro jeito (…), a partir do que a gente foi, do que a gente é e do que a gente pode ser”.
O Brasil precisa de sintonizar com o século XXI: “Parece que a gente está em séculos passados ainda… então, acho que é muito importante a gente propor outras coisas, experimentar novos mundos.”
O Brasil “passou por um momento muito tenebroso que agora está, entre escombros, tentando levantar”, alerta, defendendo “uma reconstrução” ligada à memória, entendida como algo dinâmico.
Mas essa reconstrução “está sendo muito difícil” e existe, “sem dúvida” uma ameaça de regresso à “situação bem trágica” do anterior governo.
“A radicalidade (…) faz discursos de aberrações (…) serem legitimados”, lamenta, apontando o dedo a Jair Bolsonaro por ter sido o “presidente que legitimou esses discursos”, abrindo caminho para que as pessoas se sintam “à vontade para colocar opiniões desumanas”.
“Isso está no subjetivo, está no objetivo, está na prática, está no Senado, está no parlamento. Então, mesmo que a presidência tenha mudado [agora liderada por Lula da Silva], ainda toda a estrutura política está muito arreigada nesse boi, nesse agronegócio, em todas essas questões que, enfim, estão acabando com o Brasil”, lamenta.
A 24.ª edição do Festival Músicas do Mundo – organizado pela Câmara Municipal de Sines – prossegue hoje com três atuações musicais de acesso livre e gratuito: La Muchacha y El Propio Junte (Colômbia), às 21h30, Siti & The Band (Zanzibar, Tanzânia), às 22h45, e La Chiva Gantiva (Colômbia e Bélgica), às 24h00.
Porto Covo ainda será o palco de mais um dia de concertos – com Três Tristes Tigres (Portugal, 21h30), Milingo (Argentina, 22h45) e Dungen (Suécia, 24h00) –, antes de o festival migrar para a cidade de Sines, onde ficará ate dia 27.