Após a morte de mais de 30 mil pessoas, bombardeamentos a países vizinhos e a acusação de genocídio, a morte de seis trabalhadores humanitários estrangeiros fez tremer Israel, perante um ultimato do seu mais importante aliado.
Contam-se os seis meses de guerra em Gaza e Israel parece ter chegado a uma encruzilhada: pela primeira vez, o presidente norte-americano Joe Biden instou o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu a implementar um cessar-fogo “imediato”, assim como a proteção de civis e trabalhadores humanitários, sob pena de perder o apoio dos Estados Unidos no que toca a Gaza.
O aviso veio em resposta ao triplo bombardeamento de uma equipa de voluntários estrangeiros da World Central Kitchen [WCK], em que seis estrangeiros (dos quais um norte-americano) morreram e que causou uma enorme onda de contestação internacional. Uma mensagem “nunca antes vista” que pode sugerir um ponto de viragem no conflito, diz à Lusa Randa Slim, investigadora sénior do Middle East Institute (MEI) sediado em Washington.
“[O ataque aos trabalhadores da WCK] foi o ponto de inflexão. É trágico que tenha sido necessária a morte de seis pessoas ocidentais para acordar a consciência das pessoas de que mais de 30.000 palestinianos morreram, mas esta foi a gota de água para o fim do apoio incondicional de Biden”, diz a investigadora.
O efeito foi imediato. Após inúmeros avisos da fome eminente em Gaza, bastaram poucas horas após a chamada com o Presidente Biden para que Netanyahu anunciasse a abertura da passagem de Erez entre Israel e Gaza para permitir a entrada da urgente ajuda humanitária. O primeiro-ministro reuniu o seu gabinete de guerra e enviou oficiais para o Cairo para negociar a libertação das 130 pessoas ainda feitas reféns pelo Hamas.
“Nada mais interessa a Israel senão os Estados Unidos”, acrescenta. “A opinião pública nos Estados Unidos mudou. Não só para a rejeição total do assassínio de palestinianos, mas também de todo o sistema de ocupação. [A atitude] de Biden é impulsionada por fatores domésticos como a ameaça de perder a reeleição em novembro se ele continuar com estas políticas relativamente a Israel”, aponta Slim.
Em seis meses de guerra e em resposta ao ataque do Hamas ao sul de Israel a 7 de outubro de 2023, mais de 30 mil palestinianos foram mortos, a maioria crianças e mulheres. Mais de 70 mil pessoas foram feridas, segundo dados das Nações Unidas, outros milhares continuam desaparecidos sob os escombros.
Tal como Biden, Netanyahu também tem contas a prestar internamente, desde um processo de corrupção assim que a guerra chegar ao fim, aos crescentes protestos antiguerra alimentados pelo descontentamento dos familiares dos reféns desaparecidos – talvez vivos, talvez não – nas mãos do Hamas há seis longos meses.
Durante a operação em Gaza, Israel diz ter abatido mais de 10.000 militantes do Hamas, um número contestado por várias entidades devido à falta de provas visuais do mesmo. Mas Israel conseguiu destruir uma parte substancial das infraestruturas do grupo, assim como abalar a confiança do eleitorado palestiniano, que não vê fim ao seu sofrimento.
“O Hamas vai ter que responder: a morte, as perdas, tudo isto valeu a pena?”, diz Slim.
Apesar da narrativa vitoriosa habitual de Israel, Netanyahu está longe de sair vencedor.
“Ele destruiu a Faixa de Gaza? Sim. Ele matou mais de 33.000 Palestinianos? Sim. Mas ele ainda não apanhou o ‘top três’ [dos líderes] do Hamas”, diz à Lusa. “A estratégia dele é uma estratégia de vingança que ainda não alcançou nenhum objetivo. A maioria da opinião pública internacional, incluindo os Estados Unidos, diz que Israel cometeu genocídio, ele arrasou a imagem de Israel e vai ter que pagar por isso.”
Ao longo destes seis meses, o conflito em Gaza causou também uma infiltração de tensões pela região: o Irão entrou em cena através dos ataques aéreos do Hezbollah desde o Líbano e da Síria, os Huthis do Iémen tomaram de assalto o Mar Vermelho com uma ferocidade inesperada, enquanto Israel retaliou com bombardeamentos contra os três países.
“Se há algum vencedor eu teria que dizer que é o Irão”, diz Randa Slim: “O Irão provou ser um aliado forte, que consegue unir uma rede de agentes que servem não só para dissuadir Israel, mas para moldar as regras do jogo em qualquer tipo de conflito futuro”.
Os atritos regionais tomaram novas proporções esta semana quando Israel bombardeou o consulado iraniano em Damasco, a capital Síria, e matou oficiais de topo da Guarda Revolucionária Iraniana.
Teerão prometeu um ataque de vingança: “este ataque [ao consulado] é um marco, é uma encruzilhada. Tudo o que aconteceu antes é diferente do que irá acontecer depois”, disse Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, o grupo armado xiita libanês financiado pelo Irão.
“O caminho estúpido em que Netanyahu embarcou no consulado vai abrir a porta para finalizar a batalha”, disse Nasrallah no seu tom ameaçador habitual durante um discurso na sexta-feira.
Um ataque de Teerão via Líbano pode mudar as regras do jogo, mas, diz Slim, é improvável: “O Irão não vai dar uma vitória a Netanyahu. Quando se vê o nosso inimigo a escavar a própria cova não lhe mandamos uma corda”, explica à Lusa.
Pelo caminho ficaram também os processos de normalização de relações com os países do Golfo, nomeadamente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Um processo iniciado durante a presidência de Donald Trump que prometia ganhos económicos para todos os envolvidos, assim como mais segurança para os israelitas que transformavam inimigos históricos em parceiros dentro na arena árabe e com poder sobre o Hamas.
Com a escalada de violência na Faixa de Gaza os governos do Golfo fecharam em parte as portas a Israel para abraçar a causa Palestina, pelo menos por agora.
Mas Randa Slim está otimista. A investigadora acredita que após a tempestade em Gaza virá a bonança em forma da famosa solução de dois Estados, ou seja, o estabelecimento e reconhecimento mútuo de dois Estados independentes: Israel e Palestina.
“Pelo menos a solução de dois Estados está outra vez na mesa porque mais e mais pessoas acreditam que separar estes povos, estas duas entidades, é a única hipótese de coexistência porque o que quer que existe hoje sob ocupação ilegal não está a funcionar, claramente”, diz Slim. Nesse caso, a intervenção dos países ricos do Golfo pode ter um peso considerável na mesa de negociações.
Em Gaza, a realidade é outra. Mais de um milhão e meio de pessoas estão confinadas em Rafah, a sul de Gaza, empurradas pelas investidas israelitas, em risco de fome eminente e a viver em condições “sub-humanas deploráveis” como descreve a ONU.
Até que as negociações para o fim do conflito israelo-palestiniano possam voltar a acontecer, muita guerra irá lavrar. A caminhada até à mesa de negociações está obstruída de cadáveres, minas não explodidas e escombros de hospitais destruídos. Para quem está em Gaza e olha para a frente, o caminho é quase impossível de discernir, como uma miragem no horizonte que pode ou não ser um engano.