Neste ponto de encruzilhada histórica gerada pelo declínio relativo do mundo Euroatlântico, as configurações geopolíticas e a globalização em geral ainda estão à procura da sua forma futura. Da crescente influência chinesa às reações adversas que essa influência vai suscitando, passando pela reavaliação histórica do mundo democrático das suas próprias possibilidades futuras, vão despontando outros “modelos” muito particulares de “integração” com o mundo. Em grande medida, a globalização dos próximos tempos será tão marcada pela sobrevivência e adaptação destes modelos particulares, como pela alternância de choque e cooperação entre os dois grandes blocos ocidental e chinês.

Um desses modelos particulares que mais interesse geram, e mais poder exercem, é o das chamadas “monarquias do Golfo”. Todos estes regimes situados na margem sul do Golfo Pérsico têm diferenças assinaláveis, evidentemente. Alguns são pouco mais populosos do que grandes cidades, como o Qatar. Outros nem isso, como o Bahrain. Alguns são federações de emirados, outros monarquias centralizadas e fundadoras do independentismo árabe, como a Arábia Saudita. Mas as suas semelhanças são ainda mais notáveis, e são elas que proporcionam os traços do tal modelo particular de ajustamento à globalização.

Todos são monarquias sunitas, ainda que alguns tenham grandes maiorias xiitas sob o seu mando, como no Bahrain, ou em algumas das suas regiões, como a Arábia Saudita. E, ainda que a frente não seja por enquanto compacta, tendem a ver, liderados pelos sauditas e pelos Emirados Árabes Unidos, o Irão como a grande ameaça na região.

Na verdade, até à deflagração da nova guerra entre Israel e Gaza, a preparação para um novo conflito aberto com o Irão, a par das exigências de integração na vaga mais avançada da economia mundial, fizera com que as relações com Israel desses dois inimigos do Irão tivesse atingido um nível de crescente cooperação ao ponto de assustar o regime dos ayatollas e os seus aliados mais próximos, como a Rússia.

As monarquias do Golfo têm igualmente em comum riquezas fabulosas que adquiriram e acumularam com a exploração das suas reservas de hidrocarbonetos. Mas a conjugação de fatores como a consciência da finitude das ditas reservas; a súbita autonomia energética dos EUA; a crescente consciência ecológica mundial, que tem conduzido à cada vez maior rentabilização de novas e antigas fontes alternativas de energia no Ocidente e na China; e, finalmente, a constatação pelas lideranças árabes de que as fontes de riqueza geradas pelo mercado global têm características benévolas que a extração de minérios ignora; levou a que todas, quase sem exceção, iniciassem processos de “reconversão” das suas economias, e com elas das suas sociedades. Umas mais cedo, outras mais recentemente, adotaram modelos económicos relativamente uniformes.

Os impostos baixíssimos, a abertura total das fronteiras comerciais, financeiras e tecnológicas ao exterior, a importação massiva de capacidade intelectual e técnica do Ocidente e da Ásia, associaram-se ao mais tradicional recurso a mão-de-obra de países pobres – com a formação de uma imensa classe absolutamente subordinada -, tornaram-se características inseparáveis destas economias. Importaram, a peso de ouro, delegações dos maiores museus ocidentais, como de grandes universidades americanas. Adquirem a organização de grandes torneios desportivos, sem esquecer os serviços de estrelas do entretenimento mundial a troco de honorários imbatíveis. Trouxeram os arquitetos mais criativos e os engenheiros mais arrojados para que, com doses massivas de capital, pusessem a sua técnica e imaginação ao serviço da construção das skylines mais extravagantes e sedutoras do mundo inteiro.

Mas o ponto mais interessante tem o aspeto de uma fraturante contradição. É que todos estes regimes sem exceção pretendem articular pacificamente dois elementos civilizacionais até agora tidos por irreconciliáveis. De um lado, a maior extensão possível da hipermodernidade, até ao ponto da caricatura, bem patente na obsessão com o consumo de marcas globalizadas, a ostentação do fabulosamente rico e a criação de uma indústria de turismo de massas a funcionar todo o ano. Do outro, a conservação inabalável dos costumes religiosos mais antimodernos, servindo a religião como a normatividade que organiza a sociedade de alto a baixo, mas também como princípio indispensável da legitimação do poder político.

Fomos educados a supor estes dois elementos em conflito insuperável e mortal. Um deles teria de vencer. As monarquias do Golfo, ou os seus líderes “modernizadores”, pensam o contrário. Mas não é evidente que tenham uma solução para o momento da verdade, quando as duas partes faiscarem. Momento que poderá vir sob a forma violenta ou de um ataque terrorista, ou de revoltas subversivas, como esteve iminente durante a Primavera Árabe, ou, por fim, de uma guerra titânica entre o xiismo persa e o sunismo árabe.

Antigo deputado

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 06 de janeiro