Não sabemos que destino terá o Orçamento do Estado para 2024 depois das eleições de 10 de março. Mas o dia da sua aprovação na AR foi assinalado sobretudo como o mote para se discutir o legado político do homem que chefiou o governo nos últimos oito anos. Ora, é preciso perceber que um legado político não é a mera lista de medidas aprovadas ou prometidas nestes oito anos. Por mais incompetente e inativo que seja, qualquer governo, mesmo que dure apenas oito meses, tem a seu cargo uma intendência tão extensa que consegue sempre apresentar uma lista de feitos de encher o olho. O legado político tem de consistir naquilo que é mais específico e mais causado, por assim dizer, de uma carreira política. O que significa que nunca faz parte do legado a conjuntura socioeconómica que, na maioria dos casos, depende de fatores inteiramente fora do controlo do político em causa.

Em retrospetiva, António Costa não se livrará da responsabilidade de, nos seus primeiros quatro anos, ter desperdiçado a conjuntura económica externa mais favorável de qualquer governo desde a estabilização da nossa democracia. Depois de o PS, com Sócrates, com Costa e o grosso dos seus futuros ministros, ter atirado o país para o destino da catástrofe económica que a Grécia experimentaria, o governo de Passos Coelho evitou esse destino, preservando as instituições, recuperando financeiramente o Estado, a banca e o sector privado, abriu a economia e iniciou a recuperação económica e do emprego. O que veio a partir de 2016 foi vento de feição: o programa de compras de dívida pública do BCE, juros nulos ou até negativos, preços baixos das matérias-primas e da energia, crescimento da economia europeia e global, aumentando a procura externa pelos produtos portugueses. Havia muitos, muitos anos que Portugal não conhecia ventos externos tão favoráveis. Mesmo quando essa conjuntura terminou, com a chegada dos confinamentos em resposta à epidemia da covid-19, a União Europeia compensou Portugal com uma enxurrada de dinheiro fácil cujos montantes não teriam quaisquer precedentes históricos.

O que fez Costa com tudo isso? Confessando-se alérgico a qualquer reforma estrutural, Costa não deu cabo da sua saúde. O crescimento invariavelmente propagandeado foi medíocre e muito inferior ao dos nossos aliados mais semelhantes. Em 2015, Portugal tinha nove países da UE abaixo de si no escalão do rendimento médio. Em 2022, eram apenas cinco. Nos dois anos seguintes, Portugal crescerá significativamente menos – pouco mais de metade – do que os países da coesão.

Costa e o PS reivindicam feitos como o equilíbrio orçamental e a redução da dívida. Mas isso não é um legado. Pelo contrário, a continuação dos objetivos de equilíbrio da política orçamental é uma confissão do erro passado. Aprenderam, outrossim, com Passos e a custo, o caminho de recuperação que restava a um país falido. De resto, não o teriam feito sem o BCE, que esmagou os juros da dívida e conferiu dividendos chorudos ao Banco de Portugal, nem sem o esmaga- mento do investimento público ou com a exorbitância da carga fiscal para níveis nunca vistos.

Em 2015, Costa proclamava pomposamente que não era possível haver crescimento económico sem investimento público – que ele todos os anos se encarregou de cortar até ao osso. De resto, vangloriava-se de feitos como a explosão turística, que lhe é muito anterior, ou a vinda de investimento externo, que, evidentemente, só podia iniciar-se após a estabilização financeira e social do país efetuada por Passos.

São contradições que mostram que Costa não tinha qualquer estratégia digna desse nome além da negação do governo anterior numa agenda de “reversões” e da ocupação do poder. Quando a primeira se esgotou, a segunda expôs-se finalmente com toda a sua crueza. Quanto às juras de amor que fez a políticas públicas concretas, traiu todas com um rasto infindável de fracassos. A crise gravíssima que destrói atualmente o SNS é o caso mais flagrante. Mas há outros: a crise sem paralelo na habitação, o desinvestimento em ciência ou o aumento da proporção dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional.

Contudo, Costa deixa uma marca igualmente indelével na deterioração da cultura política nacional, com danos que sentiremos durante muitos anos. Adotou o método trumpista de governo: reivindicar méritos que não são seus e repudiar todas as responsabilidades que são suas. Foi o principal mentor de uma cultura de arrogância, de propaganda até à variante estalinista de reescrever a história recente do país. Costa foi o principal responsável pelo alastramento da cultura de corrupção, de nepotismo e de compadrio. Alimentou-se do radicalismo político, normalizando a extrema-esquerda e promovendo o Chega sempre que pôde para extenuar o PPD. Chefiou a colonização de todo o país pelo seu partido, não poupando à invasão rosa nenhuma instituição, nem sequer as reguladoras e fiscalizadoras, que só são funcionais na imparcialidade entre partidos. Finalmente, deixa o país, por sua exclusiva responsabilidade, num pântano que não é só político, mas social, institucional e económico também. Legado? Que legado?

Antigo deputado

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 2 de dezembro