Os recentes acontecimentos têm feito cristalizar no Ocidente uma divisão política do apoio às partes em conflito. Há sempre exceções nestas coisas, contudo, o padrão tem-se reforçado a cada nova vaga desta interminável guerra: a direita apoia Israel e a esquerda a Palestina. Mas nem sempre foi assim.
É certo que as injustiças e a violência praticadas por Israel nas últimas décadas proporcionariam sempre apoio ocidental aos seus inimigos. Mas a própria seletividade da indignação moral com as injustiças praticadas por Israel por comparação com as catástrofes humanitárias noutras paragens não tão geograficamente distantes da Palestina – quantas lágrimas se derramaram no Ocidente pelo ainda recente massacre de Mosul?; quantas manifestações houve pela carnificina em Aleppo? – obriga-nos a examinar melhor o tema.
Se nas suas próprias sociedades os movimentos de esquerda não toleram a mais ligeira relevância do religioso; se se mobilizam agressivamente em torno da subversão de instituições sociais milenares, como a família tradicional, em nome da expressão subjetiva ilimitada da sexualidade; quando toca a escolher lados na guerra israelo-árabe, estão preparados para apoiar movimentos ultra-religiosos e radicalmente reacionários. Nas sociedades ocidentais, não há forma de disciplina social que não os faça vociferar contra o “fascismo”, mas, no Levante, o totalitarismo fanático, corrupto e tirânico só os anima. À esquerda as credenciais demo-liberais do Estado de Israel não comovem. Estão demasiado ocupados para se cegarem voluntariamente face ao poder absoluto do outro lado para fazer vingar a masculinidade heterosssexual e a irrevogabilidade da lei religiosa. Ficando bem patente a assimetria de julgamento ético que uma parte significativa da esquerda ocidental produz sobre as partes em conflito, não é menos do que imoral o seu posicionamento político.
Porém, a guerra que opõe Israel aos seus vizinhos, em particular os palestinianos, nem sempre foi vista assim no Ocidente. O projeto sionista teve desde o seu início uma inequívoca inspiração esquerdista, e o reforço com o judaísmo russo anticzarista acabaria por lhe dar um cunho socialista muito próprio. Aquando da fundação do Estado de Israel, foi a ala esquerdista do sionismo que deteve a iniciativa e o prestígio político. Foram os trabalhistas a proporcionar a geração dos fundadores e venceriam consecutivamente eleições até ao final da década de 70. Em 1948, a independência de Israel foi imediatamente reconhecida por Estaline. Em 1950, Israel reconheceu a República Popular da China de Mao, gesto pouco imitado por outros países.
Tudo isso deixou de contar. Depois da queda da URSS, a vontade de continuar a guerra contra os EUA “capitalistas” foi psicologicamente tão forte que a esquerda se recusou a reconhecer a derrota e aprontou-se a reorganizar as suas categorias e trincheiras. Já antes da queda do Muro de Berlim, aos poucos a esquerda foi acolhendo as categorizações que podiam dar sentido à continuação da luta. O “imperialismo” fornecia a nova inimizade. A guerra ao imperialismo liderado pelos EUA dava o sentido e salvava a finalidade de uma luta política que afinal de contas não era um monumental equívoco. Se o esquerdismo marxista falhara miseravelmente ao não dar conta da evolução das sociedades ocidentais, relido à luz da tese do imperialismo permitia o alargamento da guerra de classes aos colonizadores e colonizados. A escala seria global e o foco da luta podia já não estar nos trabalhadores ocidentais, mais ricos, mais confortáveis, mais seguros do que alguma vez estiveram. Estaria nos povos que combatiam de armas na mão o imperialismo e os seus postos avançados pelo mundo. O casamento de conveniência com o terceiro-mundismo de Bandung e da descolonização seria o remate que faltava. Se o Ocidente era fundamentalmente o mundo burguês, o ódio da esquerda radical ao burguês acabaria por fundir-se com o ódio puro e simples ao Ocidente. Finalmente, Israel não seria mais do que um posto avançado do imperialismo, uma intolerável colónia branca e ocidental em terra de oprimidos e colonizados.
No Ocidente, o desespero esquerdista com o sucesso histórico do capitalismo alimentou o desejo por novas vias que justificassem a continuação da mesma luta política. Não passavam de detalhes irrelevantes que os exércitos dos oprimidos fossem, não poucas vezes, ferozes inimigos de muitos dos valores políticos da própria consciência esquerdista. Era irrelevante que estivessem apostados na instauração de regimes totalitários, na criação dos seus próprios impérios ou até que fossem transparentemente racistas. A consistência da consciência esquerdista era assim devorada, devorada pelo vórtice do imperialismo ocidental como força motriz da história maligna de opressão e de injustiça nos quatro cantos do mundo.
A retórica do anti-imperialismo daria cobertura a tudo isto. E continua a dar.
Antigo deputado
Artigo publicado na edição impressa do NOVO, dia 4 de novembro