França avança para a reconstrução para superar tumultos

Os resultados dos tumultos em França já são mais graves do que os que levaram Jacques Chirac a declarar o estado de emergência, há 18 anos, numa situação muito idêntica à que agora se verifica, depois de a polícia ter abatido um jovem de ascendência magrebina. Semana e meia de confrontos depois, a principal confederação patronal calcula que os prejuízos ultrapassam já mil milhões de euros. O problema é que, mesmo quando esta tempestade se dissipar, a promessa é que o problema da integração vai continuar a existir.

Não existem balanços fechados, porque ainda não se sabe se os tumultos já terminaram em França, apesar de o Presidente, Emmanuel Macron, ter afirmado, numa reunião com autarcas de municípios mais afectados pela violência, que o pior já passou, mas, em menos de metade do tempo, as consequências são mais severas do que as registadas há 18 anos, quando os motins levaram à declaração do estado de emergência.

Os dados disponibilizados pelo Governo apontam para mais de 3.500 detidos, mais de 12 mil viaturas queimadas, entre carros, carrinhas e autocarros, e mais de 2.500 edifícios danificados desde que os motins começaram, há semana e meia, a 27 de Junho, depois de Nahel Merzouk, de ascendência argelina e marroquina, de 17 anos, ter sido abatido pela polícia, em Nanterre, nos arredores de Paris, numa operação stop, depois de ter cometido diversas infracções.

Nada disto tem a ver com as manifestações que se sucedem desde Janeiro, nas principais cidades francesas, contra a reforma do sistema de pensões e o aumento da idade de reforma em dois anos, para 64, que juntaram centenas de milhares de pessoas e que, muitas vezes, degeneraram em acções violentas.

“A França tem uma grande tradição reivindicativa que sai às ruas devido à cultura da liberdade e à força das organizações sindicais. No entanto, não se pode confundir a violência urbana de matriz étnica, de que os actuais tumultos constituem exemplo, com as reivindicações de cariz sociolaboral, embora, nos últimos tempos, como se verificou nas manifestações dos coletes amarelos e contra o aumento da idade da reforma, estas manifestações acabem por atrair indivíduos e mesmo grupos extremistas espontâneos que as aproveitam para semear o caos, recorrendo a incêndios, pilhagens, e desafiando fisicamente as forças de segurança”, diz ao NOVO José Filipe Pinto, professor de Relações Internacionais da Universidade Lusófona.

A relação que faz é com o que aconteceu em 2005 e que levou o então Presidente, Jacques Chirac, a decretar o estado de emergência para pôr fim a três semanas de tumultos.

“São fenómenos que constituem uma válvula de escape para a revolta acumulada das minorias que vivem nos arredores das grandes metrópoles e que se sentem marginalizadas pelo sistema e perseguidas pelos agentes da ordem”, diz José Filipe Pinto.Há 18 anos, o balanço aponta para mais de 4 mil detenções, mais de 10 mil carros queimados e centenas de edifícios danificados.

Em 2005, foi a morte por electrocussão de dois jovens que se esconderam da polícia numa subestação de energia que iniciou os tumultos. “Num caso e no outro, por desobediência à força policial, foram apenas o rastilho que incendiou um pavio disponível para arder”, diz Pinto.

Um problema que não vai desaparecer
Ao contrário de Chirac, Macron não decretou o estado de emergência e espera que a crise – que o obrigou a abandonar mais cedo uma reunião do Conselho Europeu, em Bruxelas, para regressar a Paris para uma reunião de emergência, e também a cancelar uma visita de Estado à Alemanha – perca força, como uma tempestade, e se dissipe. Para isso, conta com a prontidão de 45 mil agentes das forças policiais, destacados para enfrentar os tumultos.

O problema é que nada indica que a questão desapareça, mas que se mantenha latente. Um sinal disso mesmo é que a média de idade dos detidos durante os dias de motins é de 17 anos, o que levou o ministro da Justiça, Éric Dupond-Moretti, a pedir “uma resposta rápida, firme e sistemática para todos os autores” dos distúrbios, mas também a exigir sanções penais para os encarregados de educação dos menores de idade que participaram nos tumultos. Cerca de um terço dos detidos são menores criminais, que não podem ser julgados ou presos.

“Trata-se de um problema de identidade, ou melhor, de falta de identidade, de uma minoria que apenas conhece o país de origem da sua família pelos relatos do agregado familiar ou dos vizinhos da ‘cidade grande’ e que não se sente membro do país onde nasceu ou para onde foi levado em tenra idade”, afirma José Filipe Pinto.

Há factores em conta na “recusa de identificação de uma parte considerável da juventude, sobretudo de origem magrebina, com a sociedade de acolhimento”, nomeadamente “a dimensão religiosa e a discrepância entre as regras impostas, designadamente nos estabelecimentos de ensino e na utilização dos transportes e espaços colectivos, e o ambiente social e familiar desses jovens”, diz.

Segundo o Eurostat, em França, em 2018, o abandono escolar precoce da população nascida fora da União Europeia era de 15% e representava quase o dobro do valor relativo à população nativa, que se limitava a 8,4%. “Apesar de estes valores estarem abaixo da média da UE – 20,2% e 9,5%, respectivamente -, não deixam de ter reflexos no aumento dos comportamentos desviantes”, diz o professor da Universidade Lusófona.

Significará a recorrência deste tipo de eventos que a política de integração francesa falhou? José Filipe Pinto fez trabalho de campo em França, para projectos de investigação, justamente em algumas das comunidades nas quais se registaram distúrbios, e defende que o fracasso não se verifica apenas em França.

“Na verdade, a União Europeia ainda não aprendeu a lidar com os trópicos em casa, pois tanto as políticas multiculturalistas do modelo inglês como de assimilação do modelo francês não têm proporcionado uma efectiva integração. No primeiro caso, levaram à criação de guetos étnicos que quase não comunicam entre si e que transformaram grandes zonas de Londres numa espécie de Londonquistão; em França, a crença de que bastava proporcionar a todos os jovens um modelo educativo comum e marcado pela laicidade para criar uma cidadania assente no secularismo revelou-se um fracasso”, afirma.

“No caso francês, o privilégio concedido às políticas de assimilação não tem tido em conta que a França, designadamente nos arredores das grandes cidades, constitui um mosaico étnico, cultural e economicamente diverso. A aposta na assimilação, mas privilegiando a atribuição de nacionalidade com base no jus sanguinis [pela paternidade] em detrimento do jus solis [em função do local de nascimento], não se tem traduzido em inclusão e as peças do puzzle estão cada vez mais longe de se encaixar”, acrescenta.

Foco na reconstrução
Para já, e independentemente de algum aproveitamento político, especialmente à esquerda, a “prioridade absoluta” de Emmanuel Macron é restabelecer a ordem pública e dar aos responsáveis pelas autarquias afectadas mecanismos, através de uma lei urgente, para que possam reconstruir os edifícios públicos que foram destruídos durante estes dias.

A associação patronal Medef calcula que os prejuízos económicos já ultrapassam os mil milhões de euros, mas não têm em conta possíveis impactos no turismo, que pode ser afectado pela percepção de insegurança.