Quase metade de 600 famílias moçambicanas tem um familiar “assassinado”
Observatório do Meio Rural salienta que 43% dos agregados familiares inquiridos narraram ter familiares assassinados durante o conflito.
Quase metade de 600 famílias inquiridas em Cabo Delgado, norte de Moçambique, num levantamento do Observatório do Meio Rural, organização não-governamental (ONG) moçambicana, relataram ter um parente “assassinado” na violência protagonizada por grupos armados na província.
Num trabalhado intitulado “Organizações humanitárias a sul e TotalEnergies a nordeste: opções dos deslocamentos internos num contexto de Estado frágil”, o Observatório do Meio Rural (OMR) salienta que 43% dos agregados familiares inquiridos narraram ter familiares assassinados durante o conflito.
Cerca de um terço (34%) das pessoas ouvidas revelou a existência de pelo menos um parente “raptado” e 18% deram conta de “desaparecidos”.
A percentagem de raptos foi particularmente evidente no bairro Milamba, em Mocímboa da Praia, e na aldeia de Monjane, posto administrativo de Olumbi, distrito de Palma, afectando, respectivamente, 60% e 50% das famílias inquiridas.
A existência de membros “assassinados” e “desaparecidos” foi mais evidente em Monjane, precisamente nas imediações de Afungi, afectando 57% e 34% dos inquiridos, respectivamente.
De acordo com os relatos, muitos indivíduos morreram nas matas, durante os períodos de fuga desorganizada, vítimas de assassinato, doença ou exaustão.
Outros morreram afogados quando tentavam escapar por via marítima.
“Vários aldeões alegam que um número incontável de indivíduos terá perecido pela vastidão do território, referindo que as matas estão cheias de cemitérios”, lê-se no estudo.
Segundo o OMR, a questão é tal forma relevante que, entre outras sugestões, o documento recomenda “a realização de um reconhecimento simbólico das vítimas do conflito através da construção de memoriais”.
Os inquiridos atribuem aos rebeldes a responsabilidade pelas atrocidades, mas também às forças de defesa e segurança (FDS), sobretudo nos meses que se seguiram ao ataque à vila de Palma, em Março de 2021.
“Os baixos salários dos militares, a falta de domínio das línguas locais e as dificuldades de comunicação com as populações criaram um cenário propício ao abuso”, refere-se no documento.
Muitos aldeões denunciaram episódios de invasão de propriedades, pilhagens, ameaças ou extorsão de valores monetários sob acusação de terrorismo, prossegue.
Revelaram igualmente casos de desaparecimento de indivíduos nas mãos de militares.
A ONG avança que persiste um ambiente de desconfiança entre as comunidades e os membros das FDS, notando, contudo, uma diminuição da pressão sobre a população, em comparação com o que acontecia entre 2020 e 2021.
No início de Junho de 2023, três moradores de Mocímboa da Praia foram assassinados por agentes da Unidade de Intervenção Rápida, acusa o OMR.
Na sequência desse acontecimento, o governador da província de Cabo Delgado, Valige Tauabo, foi solicitado de emergência para serenar a tensão, mas o facto de se ter feito acompanhar por agentes das FDS provocou grande descontentamento popular.
“Testemunhas oculares reportam que muitos participantes se retiraram do evento, com palavras de insatisfação”, lê-se no documento do OMR.
A acusação de morte de três civis às mãos das forças de segurança já tinha sido feita pelo Centro de Democracia e Desenvolvimento (CDD), mas as autoridades moçambicanas nunca se pronunciaram sobre a alegação.
A guerra afectou profundamente o tecido social, sendo responsável pela separação ou desestruturação de muitas famílias e os traumas psicológicos são evidentes, continua o estudo: muitos entrevistados ficam visivelmente comovidos quando falam de familiares que foram vítimas de violência armada e as crianças entram em pânico perante estrondos e rebentamentos.
Por outro lado, vários interlocutores relatam problemas de insónias, nota o OMR.
A província de Cabo Delgado enfrenta há cinco anos uma insurgência armada com alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.
A insurgência levou a uma resposta militar desde Julho de 2021 com apoio do Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), libertando distritos junto aos projectos de gás, mas surgiram novas vagas de ataques a sul da região e na vizinha província de Nampula.
O conflito já fez um milhão de deslocados, de acordo com as Nações Unidas, e cerca de 4.000 mortes, segundo o projecto de registo de conflitos ACLED.