Maria João Bastos: “Acredito que Rabo de Peixe seja um ponto de viragem”

Rabo de Peixe foi o pretexto – e que pretexto – para uma longa conversa com Maria João Bastos. O sucesso da série, o que sentiram quando a gravaram, o grupo de WhatsApp que tem sido “uma loucura” e a existência de uma segunda temporada foram temas abordados. E a actriz fala também, com emoção, de quando fez de Vera Lagoa e recupera o tempo em que ganhou o disco de ouro com Liliane Marise. Esta cidadã do mundo, como se define, espera pelo convite que a tente no teatro e sente-se uma privilegiada.

É inevitável começarmos por Rabo de Peixe, que está a ser um sucesso. Esperavam isto?
Não, acho que nunca pensámos que tivesse esta projecção mundial. Percebemos que estávamos a fazer um produto diferente. Pela visão do realizador, o Augusto Fraga, a forma como ele estava a realizar, todo aquele ritmo, a forma como ele estava mesmo a realizar a cena, percebemos que ia ter um ritmo diferente e uma linguagem diferente. Percebemos que, de alguma forma, ia marcar o público português por apresentar um projecto filmado de uma forma inovadora, de certa forma, nesta linguagem. Mas existe tanto produto internacional, existe tanta série que nunca pensámos que chegássemos ao top-10 mundial da Netflix. Atingimos o sexto lugar, que é maravilhoso. Na altura, apesar de nos termos apercebido de que estávamos a fazer um produto especial, nunca tivemos a percepção de que teria este alcance, ainda que tenhamos a consciência de que iria passar em mais de 190 países. Mas que agradasse tanto ao público e que tivesse a receptividade que teve… nunca pensámos. Mas nós também, quando fazemos os trabalhos… é óbvio que, neste caso, sendo a primeira série da Netflix, sentimos ali a responsabilidade de estarmos a fazer algo que tínhamos de apresentar um bom produto, porque era um marco importante. Glória já tinha existido, Glória era uma produção portuguesa que foi posteriormente comprada pela Netflix, mas não foi uma obra encomendada pela Netflix, não foi uma produção feita pela Netflix. Aqui era tudo uma aposta da Netflix desde a raiz e nós sentimos a responsabilidade de fazer um produto bom, em que se percebesse o talento português. E quando falo de talento português, não falo só de actores, falo de tudo. Esta série é toda feita por uma equipa portuguesa, uma produtora portuguesa, equipa técnica portuguesa, actores portugueses. Percebemos que tínhamos ali uma responsabilidade de ter de apresentar um bom produto para que isso pudesse vir, eventualmente, a abrir portas e aumentar o interesse da Netflix em continuar a produzir no nosso país. Mas depois, na hora de gravar, estávamos só a filmar o nosso projecto. Com toda a entrega, com toda a paixão, com todo o amor, com toda a energia boa. Estávamos todos a acreditar. Estávamos a fazer algo especial e isso foi muito importante, porque criou uma energia muito, muito forte entre todos nós. E, aí, eu devo enaltecer a capacidade do Augusto. Isto não é só realizar, ser comandante de um barco, é gerir toda uma equipa e a energia dessa equipa, e o Augusto não só realizou muito bem, sabia exactamente aquilo que queria, como soube gerir muito bem toda a sua equipa, e isso faz toda a diferença. Naquele momento estávamos todos a viver intensamente aquela experiência, estávamos a fazer a nossa série, como fazemos tantas outras, com toda a entrega, mas também estávamos a acreditar num sonho de que isto fosse especial e abrir portas para Portugal.

Lembrava-se do acontecimento em que foi baseada a série?
Lembro-me desse acontecimento. Quando recebi o convite para fazer Rabo de Peixe, sabia exactamente de que história é que se estava a falar, mas fui investigar e lembro-me que fiquei surpresa pela repercussão que o caso teve internacionalmente na altura. À época, não tinha tido a noção de que o caso fosse tão conhecido a nível internacional, mas foi notícia lá fora. Fizemos parte de um estudo dos países com maior índice de toxico-dependência a nível europeu e, derivado desse acontecimento, Portugal e os Açores apareciam num lugar de destaque. Foi notícia lá fora, e não tinha noção de que esse episódio português tivesse tido essa repercussão. Tive quando comecei a preparar a série. E pensei: “Curioso que tivesse tido tanta repercussão e, agora, esta vai ser a primeira série portuguesa a ser feita com esse intuito internacional.” Lembro-me, na altura, de ter este pensamento e de pensar que, se calhar, ia suscitar o mesmo interesse que suscitou, pelo menos, a nível europeu, na altura.

Há muita gente que pergunta se vai haver uma segunda temporada. [ndr. a entrevista foi feita antes do anúncio da Netflix de que ia haver uma segunda temporada]
Honestamente, não sei responder. Nenhum de nós sabe responder. Falamos entre nós, temos um grupo de WhatsApp muito activo, como pode imaginar [risos], tem sido uma loucura desde que se estreou. Aliás, já antes de se estrear mantivemos a nossa ligação, os nossos jantares e as nossas festas. Esse grupo sempre foi muito activo, mas desde a estreia, enfim, é a loucura. Partilhamos memórias, notícias que saem no mundo inteiro. E também comentamos isso no grupo entre nós e ninguém sabe.

Mas gostavam que houvesse?
Adorávamos que houvesse. A primeira temporada foi feita permitindo essa possibilidade, e quem viu Rabo de Peixe sabe que, no último episódio, tudo está aberto a que a história continue. Foi feito com esse intuito, o que não significa que vá haver uma segunda temporada, mas significa que a porta, em termos de história, está totalmente aberta para que se continue, até porque as coisas não se resolveram todas.

Essa decisão está nas mãos da Netflix?
Sim, isso é uma decisão da Netflix. Pela equipa, todos adoraríamos voltar e continuar Rabo de Peixe. Faz um papel diferente do que já tinha mostrado.

A inspectora Paula Frias é muito irónica, mordaz, sarcástica, quase gozona. Deu-lhe prazer fazer essa personagem?
Deu, mas tudo isso de uma forma um bocadinho discreta, dissimulada. É tudo ali pela poupança… Está tudo lá presente, mas ela parece que está sempre num plano de distância, de observação. Ela chega a um lugar que não é o dela, não conhece ninguém. Estamos a falar, em 2001, de uma mulher na Polícia Judiciária que sai do Continente para ir para os Açores para liderar. Não é uma coisa bem-vinda, não é bem recebida…A não ser pelo Salvador Martinha.A não ser pelo Salvador Martinha, que protagoniza o estagiário Francisco. Existem ali muitos anticorpos que a fazem ficar na defesa, mas são características muito presentes nela esse lado mordaz e sarcástico, que foi muito engraçado fazer, mas sempre com uma subtileza, sempre com uma poupança de palavras – às vezes. Eram num olhar, num sorriso, e isso foi muito interessante. Isso foi pensado, trabalhado, procurado esse caminho com o realizador, também até para criar essas diferentes energias entre os diferentes grupos: o dos miúdos, o dos mafiosos, o da polícia. Há ali energias diferentes, e isso é giro.

Tem muito de si a Inspectora Paula Frias, essa subtileza, essa ironia, o sarcasmo?
Eu tenho um sentido de humor que as pessoas não conhecem. Tenho um sentido de humor um bocadinho negro, mas não sou assim tão calada como ela nem tão misteriosa como ela. Sempre fui uma pessoa muito discreta e não é de todo para querer marcar uma imagem de distância, de antipatia ou de inatingível, é porque, simplesmente, é a minha natureza resguardar-me naquele lado que é o lado pessoal. Publicamente, sou uma pessoa introvertida, mas, depois, no meu círculo, não sou uma pessoa misteriosa, sou uma pessoa até bastante clara para quem me conhece bem.

Não sei se é algum exagero – gostava de saber a sua opinião, até porque tem algum mundo, esteve no Brasil, em Nova Iorque, em Londres -, mas ouve-se que este pode ser o ponto de viragem na ficção nacional.
Essa é a minha opinião. Concordo plenamente. Já tivemos produtos que fizeram um percurso longo internacionalmente, ao nível do cinema. Eu, por exemplo, viajei com Mistérios de Lisboa pelo mundo inteiro, nos festivais, e foi um filme que teve grande sucesso, mas estamos a falar de um nicho de mercado muito específico. Aqui estamos a falar de uma repercussão mundial de massas. E, de facto, acredito que seja um ponto de viragem para a ficção portuguesa. Acredito que, agora, vai haver um maior investimento por parte de plataformas para filmar em Portugal, percebendo até que é uma mais-valia, porque temos condições fantásticas para filmar, equipas incríveis para filmar e todas as condições até para virem de fora fazer produções cá em Portugal, o que já está a acontecer um pouco. Mas acho que esta visibilidade, aquele que é o nosso trabalho e aquilo que nós conseguimos fazer, vai trazer mais interesse pelo produto português e, quanto mais se fizer, mais visibilidade se vai ter e vão-se abrindo portas, portas e portas. Por isso, sim, acredito que isto seja um ponto de viragem pela repercussão que teve.

Também é uma chamada de atenção para quem decide, a nível governamental, as políticas culturais?
Espero que sim. Acredito que sim. Existem vários incentivos para que produtos internacionais venham a ser feitos em Portugal, o que eu acho óptimo. E que haja também incentivos para que os projectos portugueses sejam feitos cá, cada vez mais e cada vez com mais investimento, porque também precisamos de mais investimento para que a qualidade cada vez cresça mais. Nós somos portugueses, temos muita capacidade em fazer omeletes sem ovos, mas é preciso mudar essa mentalidade. Nós também queremos e temos o direito de fazer omeletes com bastantes ovos, e é agora, aqui, que reside a diferença, porque temos feito coisas incríveis e ainda vivemos muitas dificuldades para as fazer. E é bom que este investimento cresça cada vez mais e o apoio seja cada vez maior para que nós possamos fazer omeletes com muitos ovos, e cada vez mais e cada vez melhor.

Muitos actores e actrizes queixam-se de que a cultura nunca é uma prioridade dos governos. Quando é que isto vai mudar?
Gostaria imenso de ter uma resposta para isso e que a minha resposta fosse “vai mudar o mais breve possível”. Não tenho resposta para isso. A única coisa que posso fazer é, de alguma forma, tentar contribuir com o meu trabalho em projectos que tornem os nossos produtos visíveis e apelativos para que se perceba realmente aquilo que sabemos fazer, precisamos de fazer e precisamos de apoio. Se calhar, começando a ter sucesso lá fora, isso pode ser também um caminho para que esse apoio venha a crescer.

Para terminarmos este capítulo sobre Rabo de Peixe, tem havido algumas críticas por as personagens não terem sotaque açoriano…Essa é uma decisão que, obviamente, não é tomada por nós. É tomada por quem produz e por quem realiza. A minha personagem não poderia ter e, portanto, não posso falar pelas outras pessoas para perceber as razões dessa decisão. O que posso dizer, enquanto actriz, é que seria muito difícil e… as condições, às vezes, que temos ainda não são as ideais no sentido em que, então numa produção destas, para que todos os actores pudessem falar com sotaque, teria de ser feita uma preparação muito tempo antes para que os actores preparassem os sotaques, inclusivamente se preparassem juntos para que estivessem todos iguais. E esse tempo de preparação não existiu. Isso leva tempo. É fazível, mas é preciso tempo para o fazer. Para fazer mal feito, acho que não vale a pena. Já pensou que também, se tivéssemos feito e não ficasse bem feito, também iriam criticar? Esse tipo de decisões, e quem as toma, é assente naquilo que melhor irá servir o projecto, e acredito que decidiram que aquilo que melhor serviria o projecto era ter um elenco forte, de bons actores, e optar por não fazer o sotaque. A verdade é que a ideia foi sempre, desde o início, que iria ser uma série com uma grande projecção internacional. Que iria ter sucesso, ninguém sabia, mas que iria chegar aos outros países, sim. E, portanto, apostar numa qualidade de representação em actores que servissem bem aquelas personagens em detrimento de um sotaque que, lá fora, ninguém vai reconhecer, parece-me que é entrar numa crítica desnecessária perante aquilo que a série trouxe para Portugal, inclusivamente para os Açores. Mostra paisagens muito bonitas dos Açores e de Rabo de Peixe. Já agora, posso contar uma história.

Conte.
Eu tenho um senhor do Luxemburgo que me escreveu a dizer assim: “Neste momento, só passo os dias a pensar e a organizar uma viagem a Rabo de Peixe. Preciso de ir àquele lugar tão bonito.” Então, eu diria que, em vez de criticar, vamos ver o lado positivo daquilo que esta série trouxe para os Açores e para Rabo de Peixe. E atenção que está a ser muito bem recebida em Rabo de Peixe.

Tem estado muito activa. Pode ser vista na HBO com Motel Valkirias, na Netflix com Rabo de Peixe, no cinema com Sombras Brancas e, na SIC, na novela Flor sem Tempo. Sente que é uma excepção num sector em que se fala muito de crise?
Eu sinto-me muito privilegiada por ter trabalho, por estar envolvida em bons projectos e ter essa oportunidade. E sinto-me privilegiada por ter a liberdade de escolha, o que, para um actor, também é muito importante, ter várias possibilidades e poder escolher aquilo que quer fazer. Mas, sem dúvida alguma, não me sinto uma excepção, porque existem muitos actores que trabalham muito e estão envolvidos em muitos projectos. Mas, de facto, sinto-me privilegiada por ter estas oportunidades, isso sim.

Fez um curso de inglês em Inglaterra, um curso de representação em Nova Iorque e cedo começou a ir para o Brasil. Foi por perceber que Portugal era mercado demasiado limitado que começou cedo a expandir os seus horizontes? Teve essa noção muito rapidamente?
Tive a noção de que queria mais. Sempre gostei muito de trabalhar em Portugal e gosto muito de trabalhar em Portugal, mas tive, desde miúda, noção de que queria ter mundo. E não tem só a ver com o meu lado profissional, tem a ver também com o meu lado pessoal. Comecei cedo. Aos 18 anos fui viver para Brighton, na Inglaterra, porque queria viver – e não tinha nada a ver com a parte profissional. Depois vivi em vários países diferentes e, aí, aliei sempre isso à questão profissional: ou ia trabalhar, ou ia fazer cursos. Mas havia sempre por trás, também, uma vontade minha e pessoal de viver e conhecer o mundo. Acho que a minha curiosidade me alimenta. Gosto de alimentar essa curiosidade, e uma das minhas grandes paixões é viajar e conhecer diferentes culturas e diferentes pessoas. E percebi que isso era fundamental para o meu lado profissional. Portanto, arranjei ali a desculpa perfeita para também suprir essa minha vontade de conhecer o mundo e comecei a perceber que havia oportunidades diferentes lá fora, onde eu podia ter diferentes experiências, crescer mais como actriz. Mas nunca foi um termo de comparação, foi um alargar dos horizontes, nunca deixando de gostar de trabalhar em Portugal. Sempre voltei para trabalhar aqui.

Já viveu em muitos sítios…
Já vivi em Paris, Bruges, Rio de Janeiro, Brighton, Nova Iorque, Los Angeles. Já vivi em diferentes países nessa procura por me alimentar quer pessoalmente, quer como actriz. Vivi em muitos desses sítios a trabalhar ou, quando não estava a trabalhar, a fazer cursos, que foi uma coisa de que sempre gostei muito e tenho feito ao longo da minha carreira – hoje, um bocadinho menos do que gostaria porque tem sido frenético o ritmo a trabalhar. Mas a verdade é que tem sido também uma característica do meu percurso essas paragens, e é aí que eu vou viver para fora e em que fico temporadas grandes a estudar… Sempre procurei… A minha diversidade, até aí se vê. Sempre procurei alimentar-me de diferentes métodos, de diferentes formas de trabalhar e, depois, procurar aquilo que me servia e ir buscar um pouco a todos.

Sente-se portuguesa, obviamente… [Interrompe.]
Muito, totalmente. Mas sinto-me uma cidadã do mundo, porque senti essa necessidade sempre, porque me realiza, e me satisfaz. Desde miúda que me considero uma cidadã do mundo.

Qual foi o projecto que a terá confirmado como uma verdadeira certeza da ficção nacional ou que lhe conferiu um estatuto diferente?
É tão difícil… O Equador foi um marco fortíssimo. Talvez o primeiro. Depois, sem dúvida nenhuma, Mistérios de Lisboa, porque foi a primeira vez que tive um filme com tanto sucesso e que fosse visto internacionalmente. Mas há uma personagem… que foi um grande, grande marco na minha carreira.

Vera Lagoa em Três Mulheres?
[Acena que sim com a cabeça] Era um trabalho biográfico muito difícil, era uma personagem ainda muito presente na cabeça das pessoas porque é uma época muito recente, ainda havia muitas pessoas vivas que a conheceram. Era um desafio muito grande porque, fisicamente, não somos parecidas. E eu sei, porque senti, porque vivi e porque recebi esse feedback de toda a gente, que fiz as pessoas acreditarem que a Vera Lagoa estava ali. Para mim, foi um trabalho muito especial, mas também um trabalho muito especial para o público, aquele com quem tive contacto e de que pude saber opinião. Porque as pessoas esqueceram-se que era eu que estava ali, viam a Vera Lagoa na essência, nos tiques, na forma de falar, na forma de mexer a cabeça. Foi um trabalho que me marcou muito.

Foi a personagem em que, no fim do dia de gravações, sentia mais dificuldade em se desligar? Por ser tão diferente.
Era muito diferente… Não tenho muita dificuldade em desligar das personagens. Às vezes é mais difícil desligar a energia delas, que fica mais tempo connosco. Por exemplo, lembro-me, quando fiz a Liliane Marise em Destinos Cruzados, passava o dia a cantar e a dançar. Não é que eu chegasse a casa e fosse a Liliane Marise, de todo. Saio do estúdio e a personagem fica lá, mas a verdade é que acabava o dia com uma energia que cantava e dançava até adormecer. E estava com uma energia para cima, positiva. É impossível não nos envolvermos. Como nesta novela, Flor Sem Tempo… É uma energia pesada, é uma mulher massacrada pela vida, que sofre muito, que vive uma angústia muito grande, e estar o dia inteiro a representar isso e a chorar e a viver essas emoções… não é que eu chegue a casa deprimida, chego a casa mais calma do que chegava quando interpretava a Liliane Marise. [risos] A energia pode ficar connosco; as personagens, não, mas há um facto curioso da Vera Lagoa. Foi um projecto muito especial. Eu tive muito apoio da família.

Da família da Vera Lagoa?
Sim, da família dela. Tive muito material que me foi dado, inclusive jóias e roupas que eu usei na série. E eu sempre me senti tão próxima dela… Realmente, as coisas aconteciam de uma maneira que parecia fácil, apesar de ter tido muito trabalho envolvido de preparação para chegar àquele ponto. Aquela personagem que eu representava vivia dentro de mim. Eu consegui aquele gesto, aquela maneira de mexer a cabeça, o tom de voz no final das frases, a entoação que ela dava… aquilo tudo já me saía naturalmente. Lembro-me de que, quando contactei a família dela, ficaram curiosos, olhavam para mim e diziam: “Como é que ela vai representar a nossa tia, a nossa avó?” Depois, quando a série se estreou, recebi um email, dos mais bonitos que já recebi na minha vida profissional, da família, muito emocionada, a dizer: “É incrível. Nós tínhamos dúvidas, não do seu talento, mas de ser possível alguém nos fazer esquecer e nos fazer ver ali a nossa avó, tia.” E a verdade é que, a partir de certa altura, era ela que estava ali, e ainda hoje me emociona pensar nesse email. Foi feito um grande trabalho de pesquisa e de preparação. Eu adormecia durante meses, todos os dias, com a Vera Lagoa, porque eu tinha todos os programas de televisão a que ela foi. E não foram muitos, foram pouquíssimos até, mas tinha um programa que se chamava Quarta-Feira, com o Carlos Cruz, que era uma entrevista enorme, e eu, durante meses, todas as noites, o meu computador estava ligado e era assim que eu adormecia, a vê-la e ouvi-la. A partir de certa altura, aquela forma de falar já fazia parte de mim naquele período em que eu filmava. É um projecto especial e acho que, como actriz, é um projecto que me marca, porque apresenta um trabalho muito diferente.

Como Liliane Marise em Destinos Cruzados, fez algo muito diferente. Juntou a representação ao gosto pela música. Fez inclusivamente um concerto na MEO Arena e a música chegou a primeiro lugar do top nacional.
A Liliane Marise deu-me uma outra experiência que foi única na vida, que eu acho que nunca mais vou viver nada parecido e que é uma experiência muito difícil de se ter. É difícil subir a um palco e cantar para 15 mil pessoas a não ser que se seja cantor. Foi uma experiência inigualável. Jamais esquecerei sensações únicas. Nunca tinha cantado até então, a não ser no karaoke, e, portanto, também me preparei muito para essa personagem – obviamente, com aulas.

Mas ouvi dizer que canta bem.
[risos] Gravei um CD que foi um sucesso. Eu gosto muito de cantar. Acho que, se não fosse actriz, se calhar teria tentado ser cantora e, então, ali tive a oportunidade de realizar um sonho. O meu sonho não era ser cantora, mas sempre gostei muito de cantar. Então, através de uma personagem, consegui realizar essa aproximação. Foi uma experiência única. Lembro-me de que, quando fui convidada para fazer a novela, havia uma reunião numa mesa grande em que estavam o José Eduardo Moniz e outras pessoas. Chamaram-me, mas eu sei que antes de eu entrar pensaram: “A João nunca vai aceitar fazer isto.” E um dos realizadores dizia: “Vamos chamar a João. Acreditem em mim, a João gosta de desafios, vamos chamar a João.” E assim que me sentei e o José Eduardo Moniz me explica a personagem, só lhes disse assim: “Tenho tempo para me preparar?” Que é uma coisa que, infelizmente, em Portugal temos pouco. “Diz o que é que tu precisas.” E eu disse: “Quero tempo e ajuda profissional.” Naquele momento, não havia nenhuma intenção nem de CD, nem de concertos. Nem sequer a história da personagem era aquela, teve de ser mudada quando se estreou devido ao sucesso que foi, porque ela, na novela, seria um fracasso. E lembro-me de ter dito que fazia, que precisava de me preparar e, no final, brinquei: “Ainda vou gravar um CD e vou estar no top nacional.” Mas disse aquilo a brincar e, efectivamente, a Liliane Marise foi um sucesso e acabámos por gravar um CD que esteve no top nacional.

Chegou a número um.
Sim, sim, ainda esteve várias semanas a liderar. Eu sou disco de ouro, e digo eu porque o disco não pode ser atribuído a uma personagem. O disco de ouro está lá em casa, foi-mo dado num concerto, foi uma surpresa para mim, eu não sabia. E, então, está lá, atribuído a Maria João Bastos, porque não pode ser atribuído a uma personagem fictícia, mas o CD não é meu, é da Liliane Marise.

Nunca pensou, depois desse sucesso, fazer uma carreira paralela?
Não, porque naquele momento iria ficar muito ligado à Liliane Marise e eu acho que tudo tem um tempo. As personagens têm um tempo. Quando terminei a novela recebi imensos convites para não terminar a Liliane Marise, desde filme a peça de teatro, a concertos, tournées pela Europa, e eu disse: “Não, a personagem tem de terminar agora.” Decidi terminar com um concerto e deixá-la ir. Era só uma personagem na minha vida. Naquele momento, nunca sequer ponderei continuar, até porque recusei todas essas propostas para manter a Liliane Marise mais um tempo viva. A novela terminou e o público enviou imensos pedidos, emails, cartas, e eu fui chamada à TVI e disseram-me: “Olha, temos aqui uma questão, está a ser muito pedido um concerto.” E eu, então, ponderei e disse: “OK, então vou viver essa experiência e fechar esta personagem num concerto.” E lembro-me de ter perguntado: “Mas onde poderá ser?” Nem no Coliseu, pensei. Um centro cultural qualquer, e eles: “Estávamos a pensar na MEO Arena.” Acabou por ser na MEO Arena e acabou por ser aquele sucesso, mas tudo o que viesse depois disso ligado à música… As coisas têm o seu tempo e a música, naquele momento, era dela.

Mas ainda pensa, um dia… [interrompe]
Não sei o dia de amanhã e, se me apetecer, amanhã, gravar um CD num registo completamente diferente, porque não? Adoro aventuras novas, adoro experiências novas e adoro viajar por diferentes universos. Gosto de cantar. Já realizei um sonho que tinha que era cantar com o Paulo Gonzo. Foi muito giro, cantei na SIC ao vivo com ele no programa da manhã. Foi um pequeno sonho que eu realizei e adorei, e é uma coisa de que eu gosto. Sendo uma coisa de que eu gosto, não sei o dia de amanhã, não descarto a possibilidade de, um dia, viver uma experiência desse género.

Tem feito pouco teatro.
Sim.

Alguma razão em especial?
Sim, eu fiz mais teatro no início da minha carreira e a verdade é que tenho tido tanto trabalho e muito desse trabalho acontece fora de Portugal, ou no Brasil, ou em Espanha… e acaba por me fazer estar muito tempo longe de Portugal. Depois, quando venho para Portugal, tenho convites para fazer televisão, séries, cinema. E eu não gosto de conciliar projectos, não gosto de fazer duas coisas ao mesmo tempo. É raríssimo fazer isso. Já o fiz, não gosto muito, e, portanto, a verdade é que nunca tive muito tempo livre. E para fazer um projecto que me exija o horário nocturno que os teatros exigem – e eu sou uma pessoa muito caseira -, que me exija uma repetição diária durante vários meses, tem de ser algo que mexa muito comigo. Existem esses projectos, mas os projectos para os quais fui convidada, ou estava a fazer alguma coisa e não quis conciliar, ou não me aliciaram muito… Foram escolhas.

Falta aparecer algo irrecusável?
Falta, mas eu tenho a sensação de que vai aparecer. E, como em tudo na minha vida, porque tenho mesmo essa convicção, acho que tudo chega na altura certa. E acho mesmo. Quero viver essa experiência. E acho mesmo que o projecto certo chegará na altura certa. Ainda não chegou.

Como todos os actores e actrizes, deve ter um objectivo ainda não concretizado de fazer uma determinada personagem ou de contracenar com alguém. Quais são os seus objectivos que ainda não foram concretizados e que espera concretizar?
Acabei de dizer um: fazer uma peça de teatro que me preencha. Vai ser um momento importante também para mim enquanto actriz. Depois… [longa pausa]

Está a pensar em algo e a decidir se diz…
[risos] Na verdade, o meu verdadeiro objectivo é continuar a ter liberdade de poder escolher os meus projectos. Porque isso é tão bom, poder escolher as personagens que quero fazer, as pessoas com quem quero trabalhar e os actores com quem quero contracenar. Isso é um privilégio. E eu tenho conseguido fazer isso ao longo da minha carreira, sempre com o objectivo de procurar personagens diferentes umas das outras. Acho que as minhas personagens são todas muito diferentes umas das outras. E isso obriga-me a ir para um lugar, a sair da minha zona de conforto, a ir para o risco.

Adora o risco.
Eu gosto do risco e o risco está associado à possibilidade de falhar. E é preciso saber falhar e aceitar a falha. Nem sempre fazemos tudo bem. Há coisas que correm bem, há coisas que correm menos bem, mas todas fazem parte do crescimento e de uma aprendizagem. E é preciso aceitar isso. Às vezes custa, é doloroso falhar, não queremos falhar, preparamo-nos para não falhar. Mas ou ficamos sempre no mesmo sítio, não falhamos, ou, então, arriscamos e assumimos o risco da falha e temos de, depois, conseguir gerir essa falha quando ela acontece e vê-la como algo positivo e como um crescimento – e não a levar muito a sério, também é importante. Mas o meu objectivo era poder continuar a trabalhar e poder continuar a escolher os meus projectos.

Mas não há assim uma personagem, um actor ou uma actriz…
G
ostava muito de fazer uma personagem biográfica que já fiz, a Vera Lagoa. Gosto muito de fazer esse tipo de personagens. Gostava muito de fazer outras. Há uma de que não vou falar porque estou a trabalhar nela – aliás, duas. É um processo ainda muito embrionário, vou correr atrás disso, procurar forma de a fazer, é uma ideia minha. Sei que, um dia, vai acontecer. Também tenho tempo, são personagens que posso fazer com diferentes idades. É um desafio muito grande para mim interpretar uma personagem real. Com quem gostava de trabalhar… Posso sonhar?

Pode.
Adoro sonhar, sonho muito. E, se é para sonhar, digo a minha actriz favorita, a Cate Blanchett.

Em pequena fazia imitações de Herman José. Já havia aí um gostinho pela representação desde muito nova?
Desde muito nova. Todas as minhas brincadeiras em criança de que tenho memória estão ligadas à representação, desde muito pequenina a passar horas em frente ao espelho a representar com as roupas e a maquilhagem da minha mãe, sozinha, as brincadeiras com as minhas cúmplices, que eram as minhas irmãs. A minha irmã Inês era a minha cúmplice: preparávamos e apresentávamos os teatros para a família e era um fartote de rir. Aquilo corria tão bem, gostavam todos tanto que eu acreditei mesmo que “uau, tenho mesmo talento para isto”. E, depois, a minha família sempre me apoiou tanto nesse sonho de pequenininha… Sempre me apoiaram tanto e sempre me fizeram tanto acreditar que era possível realizar esse sonho que as coisas foram acontecendo naturalmente. Depois, com 12 anos, pedi aos meus pais para ir para o teatro amador de Benavente e fui – um grupo de teatro em que a pessoa mais nova tinha 40 e tal anos e nem se pensava que houvesse crianças. Foram as minhas primeiras experiências com público – sem desmerecer a minha família, que foi o meu primeiro público naquele sofá, todos a assistir, e eu e a minha irmã Inês a fazermos as nossas peças de teatro a imitar o Herman José. Desde pequenina, toda a minha realidade está ligada a essas brincadeiras, todos os meus sonhos passavam por aí, e a minha família e eu sempre os alimentámos.

Ou seja, nunca houve um plano B?
Não. Teve de haver uma negociação. Licenciei-me – foi uma negociação muito pacífica porque eu queria estudar. Ao mesmo tempo que tenho este lado sonhador, sou uma pessoa com estratégia e sabia que tinha de estudar…Porque podia não correr bem. Podia não correr bem. Tinha essa negociação com os meus pais e assim foi. Eu gostava de estudar e também queria fazer faculdade, até porque queria passar pela experiência e ter essa segurança e ter o meu curso. Nunca esteve em cima da mesa, para mim, não estudar.

Licenciou-se em Ciências da Comunicação. Pensou em jornalismo?Tinha sempre de estar ligada a alguma coisa de comunicação, talvez marketing e publicidade, era uma coisa que me fascinava muito. Talvez fosse por aí.

Vi que, durante a pandemia, se aventurou na cozinha. Não lhe vou perguntar se vai abrir um restaurante, mas gostava que revelasse a sua especialidade.
A pandemia também trouxe coisas boas. E o lado bom da pandemia, para mim, foi ter tempo de explorar coisas para as quais não tinha tempo mas pelas quais sempre tive curiosidade. E sempre fui curiosa relativamente à cozinha, até porque adoro comer, como muito bem, e não tinha jeito nenhum. E aquela coisa de pensar que não tinha jeito incomodava-me. Não tinha jeito porque não praticava muito. Sempre vivi sozinha, vivi em diferentes países, e comia muito fora e ia-me adaptando muito às diferentes culturas e ao que tinham para oferecer gastronomicamente. Então, achava que cozinhava muito mal. Na pandemia pensei: “Não pode ser. Se eu me dedicar a isto, vai correr bem.” E correu. Especializei-me em doces e, sobretudo, numa alimentação saudável, apesar de não ser fundamentalista. Se é para experimentar, como quase tudo.

Mas não come carne.
Não como carne mas, em casa, especializei-me em cozinhados mais saudáveis, com o intuito de “como saudável em casa e, fora de casa, posso experimentar tudo porque eu sou um bom garfo”. Especializei-me em saladas e doces saudáveis. Eu sei que doces e saudáveis podem não combinar. Mas combina, combina. Os meus são muito saudáveis, não têm açúcar. São só produtos que até faz bem comer, como o chocolate negro – sempre ali com um equilíbrio, mas eu diria que sopas e saladas são as minhas especialidades.

Se a entrevistar daqui a dez anos, tendo em conta o seu gosto pelo risco e o carácter sonhador, com que Maria João Bastos estarei a falar?
Não me coloco muitos limites. Acho que tudo é possível. E sempre fui, desde miúda até agora, e continuo a ser uma miúda muito sonhadora que acredita que muitos dos nossos sonhos podem realizar-se. Vejo-me a continuar a ser essa miúda, a continuar a ter sonhos, a acreditar neles e na sua concretização.

Continuando a ser actriz?
Sim, sempre. É uma paixão. Não imagino a minha vida de outra maneira.