“É chocante”: PS volta a chumbar violação como crime público
Petição para tornar violação um crime público levou Bloco, PAN e Iniciativa Liberal a apresentarem projectos de lei, mas chumbo está garantido. Socialistas consideram alteração “inaceitável” e só admitem aumentar prazo de apresentação de queixa. Situação “é chocante”, diz Dulce Rocha.
Uma petição com mais de 100 mil assinaturas traz de volta à agenda política a consagração da violação como crime público. O debate sobre o tema na Assembleia da República, agendado para 30 de Março, levou Bloco de Esquerda (BE), PAN e Iniciativa Liberal (IL) a apresentarem propostas para que a investigação destes crimes não dependa de queixa da vítima, mas o chumbo está garantido. O PS não vai abrir caminho a esta alteração ao Código Penal, considerando-a “inadmissível”. Dulce Rocha, presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e uma das subscritoras da petição, esperava que os partidos com assento parlamentar ficassem sensibilizados pelo número de signatários.
Com essa esperança a cair por terra, a procuradora da República jubilada considera “chocante que o legislador continue sem ter empatia e compaixão pelas vítimas de violação”. A antiga magistrada vai ainda mais longe nas críticas e defende que está “a ser desconsiderado o sofrimento das vítimas com base no preconceito de que estas não se queixam por vergonha, o que está errado”. Para suportar esta tese, lembra um estudo realizado nos países da União Europeia que inquiriu 42 mil mulheres. Os resultados indicam que 14 mil declararam ter sido vítimas de violência sexual, mas só 10% apresentaram queixa. “As outras 90% disseram que ficaram em silêncio por medo, e a vergonha só aparecia como a terceira justificação”, revela.
Ao longo do seu percurso pelos tribunais, Dulce Rocha recebeu várias queixas de crimes de violação, como no processo da Casa Pia. A experiência não lhe deixa dúvidas de que a maioria das vítimas são “ameaçadas pelo agressor para não apresentarem queixa e ficam aterrorizadas durante décadas”. Por isso, acrescenta, “compete ao Estado garantir a sua segurança e protecção”. Esta convicção é partilhada pelas mais de 107 mil pessoas que assinaram a petição “para a conversão do crime de violação em crime público”, entre as quais o jurista e ex-ministro da Administração Interna Rui Pereira, o advogado António Garcia Pereira. a presidente honorária do IAC, Manuela Eanes, e a activista Francisca de Magalhães Barros.
Partidos insistem
Actualmente, a violação sexual é considerada um crime semipúblico, o que significa que o MP, salvo algumas excepções, só pode dar início a uma investigação se a vítima apresentar queixa no prazo de seis meses. Na última legislatura, o Bloco e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresentaram projectos para transformar a violação num crime público, permitindo ao MP agir sem queixa, mas a alteração foi rejeitada por PS, PSD, PCP e PEV.
Com a sociedade a mobilizar-se e a subscrever a petição, o Bloco de Esquerda insistiu, apresentando um projecto de lei para atribuir natureza pública aos crimes de violação, de coacção sexual e de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. Os bloquistas lembram que, há 22 anos, deram o passo para mudar o estatuto do crime de violência doméstica e que é necessário recuperar esses argumentos e aplicá-los aos ilícitos sexuais. Esta é a forma de “preservar uma verdadeira autonomia das mulheres e a afirmação da sua dignidade como seres humanos”.
O PAN juntou-se ao debate e apresentou também uma iniciativa, alegando, entre outros aspectos, que “o receio de voltar a enfrentar o agressor” leva os ofendidos a “preferir o silêncio”. O partido de Inês de Sousa Real destaca ainda a importância de mudar a lei para contrariar as estatísticas, que mostram um aumento de 26% dos crimes de violação em 2021.
A IL também quer alterar o Código Penal nesta matéria, considerando que os crimes de violação estão “envoltos num silêncio ensurdecedor”. Estes são ilícitos em que “as relações de poder têm grande relevância, abstendo-se a vítima frequentemente de denunciar o crime pelo facto de o agressor ser, muitas vezes, seu familiar ou conhecido próximo”, lê-se.
PS irredutível
Tais argumentos não convencem os socialistas, que mantêm a posição da última legislatura, considerando “altamente paternalistas” as propostas de alteração da natureza do crime de violação. “O Estado vai obrigar a vítima, maior e autodeterminada, a enfrentar o processo penal, a prova pericial e a revisitar o trauma, mesmo que ela não queira?”, pergunta a deputada Isabel Moreira, afirmando que, para o PS, “é inaceitável sujeitar os ofendidos a uma segunda vitimização [decorrente do processo judicial]” contra a sua vontade. Embora consciente da “gravidade” de uma violação, a parlamentar lembra ao NOVO que este crime entra “num espaço de intimidade profundo”. Por isso, “o legislador deve fazer uma ponderação das vantagens e desvantagens de transformar o interesse da prossecução da acção penal em crime público”.
Os socialistas entendem que o caminho não é alterar a natureza do crime, mas sim dar mais protecção às vítimas. Por isso, a 30 de Março será também votado um projecto de lei em que propõem alargar o prazo para apresentar queixa, de seis meses para um ano. Além disso, é proposta a criação de uma “via verde” no acesso ao direito, “dispensando as vítimas da prova da insuficiência económica”.
O PS lembra que, em 2015, o Código Penal foi alterado, e o Ministério Público já pode actuar nos casos de violação “sempre que o interesse da vítima o aconselhe”.