“A verdade não conhece perífrases; a justiça não admite reticências”
Guerra Junqueiro
Num mundo que vive num tão errático quanto apático tumulto (porque nos habituámos apenas a uma revolta restrita às redes sociais e tão efémera quanto tudo o que se passa no mundo virtual), restava-nos a derradeira esperança na justiça, entendida esta como algo mais profundo do que uma mera sucessão de ritos cuja razão de ser, muitas vezes, é imperceptível.
A justiça é apresentada (e convenhamos, contribuiu para tal…) ao povo não como um direito ou uma necessidade básica para a vida em sociedade, mas como uma interminável telenovela. Servem-nos casos e casinhos ao jantar, mais com a lógica da obtenção do melhor share do que propriamente como resultado de grandes investigações, sejam elas do Ministério Público, sejam de jornalistas. Pela nossa parte, vemos cada episódio na expectativa de adivinharmos o próximo, sem termos a noção de que o guião não é escrito nem por nós nem para nós.
Tal como na Alegoria da Caverna, de Platão, somos os cidadãos que vêem as sombras que nos metem à frente e entretemo-nos com as mesmas, sem termos noção de que o espectáculo não corresponde à realidade.
Estando a emissão na temporada da justiça em directo, quem olha para os tribunais, mesmo os situados em edifícios modernos, não faz ideia de que falta pessoal, incluindo juízes especializados, faltam salas, faltam gabinetes de juízes onde não chova, falta até papel, tinteiros ou papel higiénico. Falta, muitas vezes, empatia quer pelos cidadãos, agora chamados utentes, quer pelos funcionários judiciais, tantas vezes a prestarem trabalho suplementar que o Estado condena os particulares a pagar, mas que nunca remunera. Faltam condições para os próprios juízes, tantas vezes atirados para áreas que não dominam, com o peso da estatística dos processos que conseguem condicionar as suas avaliações. Faltam direitos para os advogados, que têm de contar com a boa vontade dos outros intervenientes, seja para receberem a esmola que o Estado dá para os que aceitam estar no Acesso ao Direito, seja para que um evento súbito que os impeça de trabalhar seja considerado justo impedimento.
Também aqui, com mais ou menos anúncios de modernização que nunca se concretizam em mais do que operações de cosmética, a grande citação de Lampedusa explica o que (não) se passa: “Algo deve mudar para que tudo continue como está.” É o caso.
As queixas sobre a justiça são antigas e o pouco que foi mudado apenas permite que o seu estado se mantenha. Estamos habituados a olhar para o outro lado sempre que o que a nossa vista alcança não nos agrada, mas um dia podemos ser nós a ter de nos sentar e encarar os senhores vestidos de preto. E, aí, o mínimo que vamos querer é que olhem para nós não como alegados utentes presos numa fila de supermercado, mas como pessoas. Pode é ser tarde. Acho que vale a pena pensar seriamente nisto.