Mia Couto: “Vivo num lugar onde a ideia de fim de mundo já aconteceu muitas vezes”

A pandemia, o massacre em Cabo Delgado e a experiência de um escritor a quem é imposto um confinamento: em “O Caçador de Elefantes Invisíveis”, nova colectânea de contos de Mia Couto, impõe-se uma reflexão sobre o tempo e os desafios de hoje. O autor diz que chegou a hora de Portugal se reencontrar com África e de pensar num futuro assente no diálogo e na empatia.

A pandemia, o massacre em Cabo Delgado e a experiência de um escritor a quem é imposto um confinamento: em “O Caçador de Elefantes Invisíveis”, nova colectânea de contos de Mia Couto, impõe-se uma reflexão sobre o tempo e os desafios de hoje. O autor que tem sido apontado ao Nobel da Literatura diz que chegou a hora de Portugal se reencontrar com África e de pensar num futuro assente no diálogo e na empatia.

Costuma dizer-se que “há um elefante na sala”. No caso deste seu novo livro, há vários elefantes na sala: uma pandemia, um massacre no norte de Moçambique – ambos tão invisíveis quanto reais. Estamos num mundo iminentemente mais trágico?
Estamos num mundo onde existem e são criadas invisibilidades a todo o tempo. As pessoas que estão a ser mortas e massacradas em Cabo Delgado só foram notícia quando o que se passa atingiu uma certa dimensão, devido a um ataque próximo de uma fábrica cujos interesses extravasam Moçambique. Caso contrário, iria provavelmente acontecer aquilo que aconteceu na Guerra Civil de Moçambique, em que morreu um milhão de pessoas, mas isso não foi notícia. Havia cinco milhões de refugiados e nunca ninguém falou daquelas pessoas, que encontraram abrigo nos países vizinhos. A tragédia dos refugiados só é notícia quando acontece no Mediterrâneo, numa zona mais próxima do centro do mundo. Na periferia, corre-se o risco de ser invisível. O paralelo com a pandemia é feliz, mas é preciso também perceber que se fosse uma doença que atingisse só África – não menosprezando a dimensão da pandemia – e só ficasse por lá , o impacto seria menor.

Há o caso da malária.
Sim, é um bom exemplo de uma doença que é ainda mais dramática. É uma coisa silenciosa. Mata muito mais em África do que a covid e, no entanto, não é grande notícia nem grande preocupação. Acho que a investigação também foi muito adiada. Isto não quer dizer que haja uma intenção malévola de massacrar África. O que se passa é que se trata de um mercado que não interessa tanto desse ponto de vista.

Sente que muitos assuntos se tornam apenas visíveis quando estão próximos dos centros de poder?
Sim, embora considere que, hoje, o risco da invisibilidade seja global. Há milhões de pessoas que moram dentro das grandes cidades e que têm essa percepção da invisibilidade, que já não é apenas sentida pelos que estão na periferia. Como é que algo se torna visível? Torna-se visível quando se é sujeito de uma história, quando alguém olha para essa pessoa e sublinha a sua existência. Hoje em dia, isso é uma coisa efémera. Já não nos olhamos nos olhos, já não queremos saber da história dos outros. Quando me aproximo de alguém, como faço em Moçambique, as pessoas têm medo, pensam que há ali uma intromissão invasiva no sentimento de privacidade. O fenómeno que se vive hoje traduz-se numa máquina de produção de invisibilidade, que é um mal comum, seja em países ricos ou pobres.

Que é também um convite à indiferença.
Sem querer, começamos a pensar o que importa em nós. Por exemplo, o que eu quero é ter uma história , mas o que o mundo me pede é um CV. O mundo pede que em vez de sonhos, tenha metas. Aos poucos vou-me convertendo numa empresa. Já não sou um sujeito, um indivíduo. Sou uma empresa e tenho de saber vender-me. Só que esse é, ao mesmo tempo, um processo de desumanização. Trata-se, hoje em dia, de um logro do qual todos fazemos parte.

Podemos ler estes contos separadamente mas, ao lê-los reunidos, vemo-los como profundos exercícios de libertação. A pandemia trouxe-lhe uma nova condição para a escrita?
Não sei como posso responder. Vivo num lugar onde a ideia de fim de mundo já aconteceu várias vezes. Nós tivemos uma percepção dramática, mas não vivemos a pandemia como se fosse alguma coisa trágica. Tivemos esse fim do mundo com a guerra civil, por exemplo. Pensava que não havia saída possível. Que era uma espécie de morte colectiva de todo um país.

Contínua e permanente.
Todos os dias nascia, olhava para o mundo e dizia “não vale a pena sair”. Tinha de encontrar todos os dias comida para os meus filhos. Era um fenómeno que exigia uma resistência. Ao vivermos esse tipo de processo, percebemos que há vários mundos. Tem de haver muitos fins do mundo para que este mundo acabe. Essa dimensão trágica bateu agora à porta de outros países mas, ali, era como se já tivéssemos feito uma espécie de escola de vivência.

Como foi viver esse período em Moçambique?
Como escritor, faço parte da comissão científica que aconselha o Governo na gestão da covid, e uma das coisas que me preocupavam era como se ia explicar a pessoas que são analfabetas e que vivem num universo sem escola que há uma coisa chamada vírus, que não tem tradução possível, que há uma coisa chamada quarentena e outra chamada doente assintomático.

Como refere no livro.
Exactamente. Mas, de facto, as pessoas aceitaram imediatamente, porque a ideia de que existem seres e criaturas invisíveis é perfeitamente natural. Está incorporada naquela cultura em que se aceita não só que essas criaturas existem como comandam o mundo e que a forma de sermos felizes passa por se conseguir ter harmonia com essas forças. Um dia apareceu um grupo de curandeiros no Ministério da Saúde e vinham dizer o seguinte: “Olhem, nós não conhecemos essa doença, os nossos antepassados nunca a tiveram, e por isso queremos pedir-vos que quando descobrirem este vírus, tentem saber qual é a língua que ele fala porque nós queremos conversar com ele, achamos que também é preciso tranquilizá-lo.” Isto é uma percepção que deriva de uma ideia diferente da doença. A doença é uma desarmonia, é um desequilíbrio, e só se consegue a cura retomando essa relação de equilíbrio.

Esse trabalho como consultor para o Governo ajudou-o na reflexão sobre este período?
Nós nunca tivemos um confinamento rigoroso, como sucedeu aqui [em Portugal]. A lição que ganhei foi esta: não podemos ter um procedimento geral como, por exemplo, a recomendação de ficar em casa, e dizer isso a uma sociedade em que há casas onde vivem 40 pessoas numa pequena sala. Ir para a rua é a melhor forma de conter a contaminação. Toda a economia urbana se dá na rua, através dos vendedores, dos mercados… vamos fechá-los? Tivemos de gerir a coisa de uma outra maneira. Felizmente, para nós, a pandemia deu-se de modo mais ligeiro.

Num dos contos aborda a experiência da escrita solitária e desse vírus que, parafraseando uma expressão do livro, “bate à porta, por assim dizer”.
Trabalho muito em casa. Só me senti realmente confinado quando fiquei doente, com covid. Teve de se inventar uma casa dentro da casa. Era o meu quarto e não tinha relação com mais ninguém. Esse golpe, sim, para mim, foi terrível. Primeiro, porque todos os dias pensava que era no dia seguinte que ia começar a ter sintomas mais graves.

Estava à espera desse bater à porta?
Se um dia batesse à porta, já não era o vírus, era a morte. Sou muito hipocondríaco. Não tenho uma relação boa com a doença. Por isso, já me imaginava morto. É nessa impotência, porque sabia que não podia fazer grande coisa, que se acende realmente essa ideia do escritor solitário.

A certa altura escreve que a solidão é como um incêndio que pode consumir-nos por dentro.
O que me fazia espécie e me instigava era o facto de não notar a solidão dos outros, que já existia antes. Há três dias fui a uma farmácia e estava uma senhora idosa numa fila imensa que não andava e comecei a pensar que aquela senhora não vinha pedir um medicamento, que ela queria companhia. E logo naquele ambiente que assegura uma tranquilidade, uma ordem.

Os contos são porventura uma resposta mais fácil ao facto de ter muitos temas sobre os quais queria escrever?
Para dizer a verdade, acho que o conto se ajeita mais àquilo que se passou. Tenho mais dificuldade em criar uma estrutura e uma ordem porque, nestas alturas, qualquer situação me instiga, como essa senhora naquela farmácia, que me faz querer converter isso numa história. É o que faço desde criança. Eu não fui feliz na escola. Fui feliz na minha infância, mas a escola doía-me, por aquela coisa de estar sujeito a um programa. A directora da escola escrevia sempre uma mensagem para os meus pais a dizer: “O aluno nunca faltou, mas também nunca esteve presente.” Estava sempre a olhar para a janela, olhando para o mundo e inventando coisas. Aprendi na escola a não estar onde estava. Foi o que a escola me deu de mais importante e, por isso, tenho uma dívida muito grande.

É quase uma antítese.
Exercitava-me imenso. Fazia de conta que estava atento mas, na verdade, estava vivendo uma outra personagem. Outra coisa que também aprendi na infância foi ver uma pessoa passar, olhar, ver uma sombra e começar imediatamente a pensar numa história.
De repente, já sou aquela pessoa.

Este é um livro muito sintomático da realidade actual. Fala das novas hierarquias que se criaram, de uma certa ideia de indiferença e de uma falta de maravilhamento com as coisas abstractas da vida. O seu olhar clínico reflecte, ainda assim, uma certa ideia de esperança.
Tenho muita esperança. Primeiro, como resposta para uma tendência agora negativista, em que tudo tem um peso apocalíptico: o clima, a natureza que está a acabar com o mundo, o já não haver política. Já não há nenhum investimento de esperança para que uma geração diga que quer lutar e dar uma resposta. Segundo, acho que o que se deve fazer é aprender a lição, embora ache que esta pandemia nos deu uma lição que parece que vamos esquecer rapidamente. Em 1918 tivemos a gripe espanhola e parece que ninguém se lembra disso. Passou, foi apagado. Neste caso, acho que a grande lição seria a de descentralização da espécie humana, não como dona do mundo, mas na percepção de que, afinal, existem aqui umas coisas que são os vírus e as bactérias e que são elas que geram a vida. O motor da vida não somos nós. Outra coisa que é importante que se aprenda é a diversidade que nos compõe, que está dentro de cada um de nós. Somos compostos de bactérias e vírus, mas não como se estes fossem moradores, e nós os proprietários.

Como biólogo, essa experiência já estava bem percebida antes da pandemia?
Já estava, claro, por causa da minha área profissional, mas acho é que esse não é um assunto apenas dos biólogos. Se uma criança aprender que existe essa diversidade dentro dela logo à partida, é muito mais difícil que seja racista ou sexista no futuro. Se eu sei, por exemplo, que tenho um lado mulher, vou viver mais tranquilamente as diferenças sexuais e respeitar mais porque, afinal, sou eu, não é preciso que seja o outro a servir de exemplo.

É uma forma de se criar uma harmonia natural?
Aprender a ser o outro é a resposta mais radical e profunda. Se passar aqui uma manifestação a favor dos portadores de albinismo ou qualquer coisa assim, eu estou lá não porque sou solidário só, mas porque sei que esse albino pode existir dentro de mim.

Mas como fazemos quando isso se aplica a algo mais violento, como uma marcha de extrema-direita?
Aí, não se aplica. Acho que a nossa espécie é essencialmente solidária. Isto é, para que sejas violento para com alguém, esse alguém tem de deixar de ser pessoa, tem de se desumanizar. Só assim somos capazes de agredir e só assim somos capazes de matar. As guerras são feitas assim e não começam no primeiro tiro. Começam quando se diz, por exemplo, que os espanhóis são demónios. Tenho fé que sobrevivemos como espécie porque somos solidários, porque percebemos que éramos frágeis individualmente e que, portanto, o grupo, a família, era mais importante do que propriamente a habilidade individual.

Assusta-o que esses processos de desumanização estejam a acontecer mais frequentemente?
Assusta-me, porque essas pessoas estão com medo e não aceitam debater com ninguém. Mas temos de ter alguma estratégia para que se previna que as pessoas tenham medo. Acho que vivemos numa máquina de produção do medo. Digamos que o medo gera um grande lucro. É um grande investimento. Temos um fenómeno chamado terrorismo que não é só fabricado por causa de uma opção religiosa. É fabricado pelo próprio complexo de produção de armas que precisa de guerras, que precisa de inimigos e de vítimas, que ajuda a legitimar um lado que passa a ser diabólico. E depois cria-se a ideia da segurança nacional posta em causa. Por isso é que temos muita gente preocupada com a segurança, mas pouca gente preocupada com a justiça.

Faz algum tipo de diagnóstico desse fenómeno?
É um processo lento de desacreditar aquilo que era, por exemplo, o Estado social, que prestava assistência às pessoas e que era a garantia de que estas pudessem ter alguma tranquilidade quando fossem velhas ou estivessem doentes. Houve um esvaziamento desse Estado de assistência. Temos também um convite para desistir da política. As pessoas acham que os políticos são todos iguais e, portanto, esse território é abandonado. O que sobra disso? As grandes causas foram todas fragmentadas. Hoje temos lutas que são lutas identitárias, por causa da raça, do género ou da orientação sexual. Mas não há uma luta comum. Veja-se a luta ambiental. Eu, que trabalho nessa área e me sinto confortável a falar disso, reconheço que se essa luta for um gueto apenas dos ambientalistas, se for separada do resto, não se vai conseguir salvar coisa nenhuma. Não são os ambientalistas que vão salvar a natureza. É preciso ir às causas mais fundas. Se esta economia predadora transforma tudo em recurso… Com a maior das vontades, chamamos a uma floresta recurso. Às pessoas chamamos recursos. Aos poucos, somos invadidos por essa percepção do mundo. Estamos aqui porque somos pequenas empresas que usamos recursos.

Neste livro há estátuas de Camões e de Vasco da Gama em Moçambique que dialogam entre elas, há países sem nome e coronéis com traumas de guerra. A política e, sobretudo, o colonialismo estão sempre dentro dos seus livros.
Que passou a haver de outra forma. Em vez de se colonizarem nações, vemos que a governação é feita pelo mercado, que não tem rosto, não tem lugar nem geografia. A colonização que existe agora é uma colonização por via do acesso à informação. Vemos o mundo, hoje, através de três ou quatro canais de televisão. São eles que nos dizem o que é o Afeganistão e o que se passa na Índia e noutros lugares. Preocupa-me um certo empobrecimento na diversidade de fontes de informação. Vemos agora com o Prémio Nobel da Literatura e como a discussão era se ele era realmente africano, inglês, negro ou mulato. Alguém está preocupado com a sua obra? Esta devia ser a primeira questão.

Há poucos anos disse que, na literatura africana, há um realismo real. Essa literatura pode contribuir para um olhar menos estereotipado de África?
Este ano, África está a ganhar todos os campeonatos. Ganhou o Nobel, o Gouncourt, o Booker e até o Prémio Camões. Acho que se está a fazer justiça. É verdade que estes escritores eram menos conhecidos, mas estavam lá. Acho que isso foi uma vitória contra o preconceito. Às vezes, os africanos contribuíam para essa visão estereotipada, achavam que para bater à porta da Europa tinham de ser exóticos. Hoje, os africanos estão livres disso e não querem afirmar uma imagem de África que foi produzida pelos europeus.

Sente que essa imagem ainda se perpetua na Europa?
Sim, ainda há pouco tempo ouvi um político dizer que os dirigentes africanos são corruptos, como se a corrupção tivesse uma moradia exclusiva num continente, como se algum país pudesse falar à vontade da corrupção dos outros.

Tem algum comentário a fazer sobre o debate que se tem aprofundado em Portugal relativamente ao colonialismo?
É um debate que ainda não existe tanto no nosso lado. Mas diria que não existe pós-colonialismo, porque o colonialismo não passou. Mudou de turno, mas a relação, por exemplo, entre África e o resto
do mundo continua a ser a de um continente que fornece matéria-prima ao mundo, e os africanos percebem que não são precisos colonos europeus em África para manter essa matriz.

É parte de um processo de trauma?
Não é por causa de um trauma, acho que não há outra saída. Nós tentámos fazer uma revolução em Moçambique e essa revolução foi completamente esmagada. Também foi esmagada por dentro porque nós próprios não percebemos que as coisas eram mais complexas.

Nesse sentido considera que esse debate em Portugal pode ficar sem efeito?
Não. Não posso ter essa arrogância de pensar no que se deve fazer em Portugal ou na Europa. O que acho é que vale a pena que juntos revisitemos esse passado. Acho que chegou o momento do encontro. Aquela ideia do descobrimento, de alguém descobrir alguém… é preciso virar essa página. Sou muito adepto da ideia de se criar um museu da escravatura, e Lisboa podia ser um bom sítio para um museu que fosse feito com a contribuição dos dois lados. Cada um trazia o seu olhar – e aí voltamos à história das estátuas no conto, que é pôr essas pessoas a falar entre elas.

O filósofo camaronês Achille Mbembe foi convidado pelo Governo francês a fazer um relatório sobre a relação de França com as antigas colónias. Ele disse que achava que o Presidente Macron tinha uma nova visão de África. No seu caso, acredita nestas novas gerações de decisores políticos europeus e africanos?
Acredito que haja uma diferença em relação ao que tínhamos há dez ou 15 anos e que haja uma mudança, mas, como disse, esse tipo de diálogo tem de ser construído assim, com uma conversa e uma relação nova. As relações constroem as pessoas. Não são as pessoas que, sozinhas, constroem uma relação. É preciso que haja um diálogo descomplexado, sem a noção de ajuste de contas, sem querer somente encontrar culpados. Isso leva o seu tempo, não tenho muita esperança de que seja uma coisa que vá acontecer agora.

Paulina Chiziane ganhou o Prémio Camões 2021, que também já recebeu. É uma satisfação ver uma mulher moçambicana distinguida com este prémio?
Sem dúvida. Somos amigos há muito tempo. Acompanhei todo o trajecto literário e pessoal dela, que é uma luta e é um exemplo bom de um percurso feito contra tudo e contra todos e de afirmação desta ideia de mulher. É autora do primeiro romance feito por uma mulher em Moçambique. Fico muito feliz por esse reconhecimento.

Também este ano, o Nobel, para o qual Mia Couto era apontado como candidato, foi entregue a Abdulrazak Gurnah. Como vê a ascensão destas figuras muitas vezes consideradas periféricas no mundo ocidental?
Não é a primeira vez que um africano ganha um Nobel, mas acho que é a primeira vez que o assunto é visto nessa dimensão. Quando a Nadine Gordimer ou o Coetzee ganharam o Nobel, por acaso, os dois eram brancos e esse debate foi completamente absorvido. E acho que agora há um debate sobre este assunto das identidades continentais e raciais que, para mim, às vezes é muito equivocado, mas, outras vezes, é importante que aconteça. É também importante que comecemos a pensar que não existe uma coisa chamada literatura africana. Existem tantas literaturas quantos os autores. Da mesma maneira que, quando Saramago ganhou o Nobel, ninguém falava se ele era ribatejano ou qual era ligação dele com a cultura dos antigos em Portugal. Saramago era um europeu. Talvez a única coisa que nos valesse é que escrevia em língua portuguesa.

No caso destes escritores, o debate começa muitas vezes na sua origem.
Sim. O escritor que ganhou o Gouncourt disse logo: “Ganhei não porque sou africano ou negro, mas porque sou escritor.” Mas isso também já faz parte de uma certa contracorrente, porque também existe essa necessidade, que compreendo, de dizer que não se ganha porque se é negro ou mulher. Mas não se deve criar a ideia de que isso é o mais importante. O mais importante é a qualidade do trabalho.

Gostaria de ganhar o Nobel?
Gostaria, mas nunca vou ganhar.

Porque diz isso?
Tinha de ter uma grande presunção sobre a qualidade do meu trabalho que não tenho. Há milhares de pessoas que escrevem melhor do que eu.

Seria uma decisão do júri.
Sim, mas se estivesse no júri não votaria por mim. [risos] Com os prémios tenho essa relação que me parece que é a que dá maior felicidade: se eles acontecem, fico feliz; se não acontecem, também não fico infeliz. Ando distraído deles.

Recordando esse jovem que com 17 anos estava a lutar por um país que ainda não existia como território independente, como se sente hoje ao saber que é um dos maiores escritores contemporâneos?Nunca pensei que seria publicado. Na minha família era tido como uma espécie de retardado. Achavam-me graça porque tinha dificuldades em comunicar. Por isso, fazer um livro já foi uma vitória. Simplesmente, aconteceu. E, depois, o livro viajou. Foi durante a guerra civil. Havia só uma tipografia que fazia coisas com tinta velha, mas que conseguiu fazer o livro. A capa estava toda manchada. Era um livro muito feio, mas veio parar aqui, a Portugal. Estava em cima de uma mesa e passou uma académica brasileira que estava aqui a dar aulas e olhou e disse: “Que livro tão feio.” Certo é que o levou para casa, leu e achou graça, fez uma recensão crítica e houve uma editora que ficou interessada em fazer uma edição. Isto para dizer que sei que os livros são resultado do meu trabalho, mas que há circunstâncias, que foram completamente acidentais, que fizeram com que eu surgisse com um bocadinho mais de visibilidade.

A escrita não é um ofício a prazo?
Sempre que acaba um livro, penso que foi o último, mas, no dia seguinte, já me estão a surgir novas histórias. Não vivo isso com drama. No dia em que não tiver uma relação criativa com o mundo, paro. Até hoje, é a minha maneira de viver. Vivo por sonhos e histórias e, caso não tenha alguém que publique, não é o fim do mundo. Vou sempre viver por via das histórias que quero contar.