Certifica-te de que és factor de soma na vida das pessoas com quem te cruzas.
Cícero
Há décadas que em Portugal há quatro coisas que podemos dar como certas: os impostos, os incêndios no Verão, as cheias no Inverno e a revolta inconsequente quanto a todos os outros três factores. Entre as características do povo português ressalta claramente o sentido de humor, mas é também este que nos impede de levar a sério o que de errado se passa e procurar, de facto, mudar as coisas… Pela minha parte, que me vi obrigada a enfrentar o dilúvio que se abateu sobre Alvalade ao regressar das aulas que ministro, dou por mim a agradecer à Divina Providência ou a alguém por ela o meu carro não ter começado a nadar. Se os banhos de humildade são muitas vezes precisos, o banho mais do que húmido que levei no túnel de Entrecampos era perfeitamente escusado.
A segunda volta das eleições para o conselho geral e para o cargo de bastonário da Ordem dos Advogados decorre na próxima semana. Parece-me quase certo que, para o mais comum dos mortais, este acto eleitoral esteja a passar-lhe completamente ao lado, atenta a inércia e a irrelevância a que a ordem se votou há décadas. Importa que se esclareça que a importância desta ordem vai (ou deveria ir…) muito além da defesa corporativa dos seus membros, competindo-lhe também a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Uma ordem e um bastonário paralisados e reféns das suas agendas pessoais não prejudicam apenas os advogados, já habituados ao salve-se quem puder, ou os cidadãos mais frágeis, como também os pilares de um Estado social de direito. Não perceber isto é não perceber o que são os direitos, liberdades e garantias e é quase cuspir em quem tanto lutou para que fossem consagrados.
Ser advogado, parece-me, é perceber que a missão que nos é confiada está muito acima dos interesses da classe profissional. É olhar mais para os outros do que para nós próprios. É não nos deixarmos funcionalizar ao sabor dos interesses de cada momento. É, acima de tudo, sermos livres, porque só se tocam as estrelas se não tivermos grilhetas.
Esta seria, para mim, a verdadeira pedra-de-toque destas eleições: a ordem reencontrar o seu papel e exercê-lo. Curiosamente, o discurso de qualquer das duas listas que se opõem fala muito pouco do que é a missão da ordem e transformou quase tudo numa luta de classes – aliás, com momentos de muito pouca classe, opondo os que estão, aparentemente, numa situação pior face aos que estarão melhor em termos financeiros.
Não consigo rever-me numa polarização de umbigos, como não vislumbro utilidade maior numa ordem que esteja transformada num sindicato, seja dos interesses de uns, seja de outros.
Parece-me que, para prejuízo de todos, ganhe quem ganhar, do que se trata é de nos menorizar a todos. Se, de um lado, estão em questão os grandes interesses económicos, pondo em causa a advocacia em prática individual, do outro, quase tudo o que se propõe se reporta aos advogados que estão no sistema de apoio judiciário. E, postas as coisas nestes termos, como o foram, votar tornou-se um acto de escolher um mal menor. É uma pena porque, da irrelevância à inutilidade, o passo para o abismo é muito pequeno.