Boris pede nova oportunidade
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, está em dificuldades políticas e muitos deputados conservadores, incluindo figuras influentes do partido, criticam as “festas” no número 10 de Downing Street. O relatório oficial sobre o escândalo só serviu para aumentar a contestação.
“Eu resolvo o problema”, afirmou Boris Johnson na Câmara dos Comuns, ao reagir às acusações contidas no relatório de Susan Gray. O chefe do executivo de Londres procurou, assim, garantir aos deputados e ao país que o seu governo tem capacidade para se manter em exercício e que não voltarão a acontecer “falhas de liderança”.
As promessas de Johnson, na véspera de partir para a Ucrânia em missão de pacificação entre Moscovo e Kiev, poderão não ser suficientes para o manter no poder até pelo menos às eleições de Maio. Tudo irá depender, afinal, do seu próprio partido ou do eleitorado conservador.
No documento de 12 páginas, a funcionária pública Susan Gray revela como elementos do Governo violaram as regras que haviam sido estabelecidas para todo o país, então em confinamento provocado pela pandemia. Em causa, as “festas” realizadas nos jardins do número 10 de Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro britânico, onde não havia distanciamento social e o consumo de álcool terá sido excessivo.
Boris Johnson garantiu inicialmente que as regras estabelecidas pelo Executivo para lutar contra a pandemia tinham sido respeitadas por todos, a começar por ele próprio, e que as tais “festas” tinham sido meras reuniões de trabalho. Hoje, aliados do primeiro-ministro reconhecem que este foi mal aconselhado.
O relatório de Gray é apenas a “ponta do iceberg”, uma vez que a funcionária, por decisão da Scotland Yard, teve de omitir do seu documento uma série de acontecimentos que a polícia está agora a investigar. De acordo com fontes da polícia britânica, esta tem em seu poder 500 páginas de material e 300 fotografias de acontecimentos ocorridos entre Maio de 2020 e Abril de 2021, três dos quais contaram com a presença de Boris Johnson – e um deles aconteceu no próprio apartamento do primeiro-ministro.
May não poupa Boris
Na sessão da Câmara dos Comuns na segunda-feira, Boris Johnson não teve de ouvir apenas as críticas do Partido Trabalhista (oposição), mas também da sua própria força política, os conservadores; e não deixa de ser curioso que estes sejam liderados pela ex-primeira-ministra Theresa May, que não poupou o primeiro-ministro. Aliás, May foi ao ponto de perguntar a Johnson se ele tinha lido ou compreendido as regras contra a covid criadas pelo seu próprio governo ou se “acreditava que elas não se aplicavam” ao número 10.
Aaron Bell, deputado conservador, recordou durante o debate como assistiu ao funeral da avó durante o primeiro confinamento e acrescentou: “Não abracei os meus filhos. Não abracei os meus pais. Fiz o elogio fúnebre e nem sequer fui a sua casa beber uma chávena de chá. Conduzi durante três horas de Staffordshire até Kent. Será que o primeiro-ministro pensa que sou louco?”
Por seu turno, Andrew Mitchell, ex-membro do governo conservador, anunciou retirar o seu apoio a Johnson e adiantou que a questão das festas é “uma crise que não vai desaparecer e que está a provocar grande dano ao partido. Em minha opinião, este [escândalo] é mais corrosivo do que o escândalo das despesas e irá destruir a coligação que é o Partido Conservador”.
“Penso que o problema é que Boris está a dirigir um governo moderno como se de um tribunal medieval se tratasse”, avançou ainda Mitchell.
Boris Johnson sabe que está nas mãos do seu partido e, obviamente, do eleitorado. Um grupo de deputados conservadores afirmou já que aguarda o relatório completo de Susan Gray para decidir se retira, ou não, o apoio ao primeiro-ministro. Na segunda-feira à noite, o chefe do Executivo convocou os seus apoiantes na Câmara dos Comuns para uma reunião em Downing Street durante a qual prometeu uma remodelação ministerial e lhes garantiu uma liderança consequente.
Opinião popular
Analistas britânicos avançaram à imprensa que os deputados conservadores irão tomar uma decisão após contacto com os seus constituintes e explicaram: se sentirem que irão ser penalizados nas eleições por causa das “festas de Downing Street” nem irão dar-se ao trabalho de esperar pelo relatório completo para tomar uma atitude. Ou seja, avançarão com uma moção de censura que levará à queda imediata de Boris Johnson, fazendo cair o primeiro-ministro para salvarem a sua própria pele e não perderem eles o lugar nas próximas eleições.
Caso os constituintes conservadores, embora se manifestem magoados com as “festas” do primeiro-ministro num momento tão difícil para o país, considerem que foi apenas um erro, os deputados não avançam com a moção de censura e Johnson poderá apenas ser derrotado nas urnas, nas eleições de Maio. Eventualmente.
A mágoa entre muitos britânicos é real e o facto de o relatório de Susan Gray não estar completo ainda torna mais difícil lidar com a situação para aqueles que perderam familiares.
Em declarações à BBC, Safiah Ngah, de 29 anos, considerou que “o Governo não levou a sério a experiência pela qual o povo passou”. O pai de Safiah era psicoterapeuta clínico, a trabalhar no serviço nacional de saúde há 40 anos, e “seguiu todas as regras”. Faleceu de covid e a família “apenas pôde vê-lo através de uma única videochamada feita a partir do hospital”.
“Estava a fazer o luto da minha mãe num lar enquanto eles estavam a divertir-se”, afirmou Helena à BBC, enquanto Brenda recordava como a sua mãe faleceu de covid-19 no hospital sem que a família fosse autorizada a lá estar. E acrescentou: “Não discuti nem lutei contra o facto de não podermos. Nós, enquanto família, aceitámos, bem como muitos outros. Aceitámos que não podíamos trazê-la para casa e fazer o funeral que a mãe merecia, tal como milhares de outras famílias.” “Um primeiro-ministro com um mínimo de dignidade ter-se-ia demitido”, concluiu.
Além dos britânicos que perderam familiares para a covid-19, há ainda todos aqueles que infringiram as regras e foram multados. Mais de três quartos dos que pagaram coimas têm menos de 35 anos.
São estas memórias que os eleitos conservadores temem.
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Católica irlandesa dirige corredores do poder
Susan Gray, ou Sue Gray, é a funcionária pública britânica que investiga as “festas” em Downing Street durante o período em que o confinamento estava em vigor no país. Gray assumiu a tarefa após Simon Case se ter demitido da mesma, por também ter participado nas festas realizadas nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.
Nascida em Londres em 1957, filha de pais irlandeses, Gray teve uma educação católica. Aos 18 anos, a morte súbita do pai forçou-a a desistir da universidade para trabalhar, o que a levou ao serviço público. Nos anos 80, no auge do conflito entre unionistas e católicos na Irlanda do Norte, Gray deixou Londres para se dedicar à gestão de um bar – Cove Bar – em Newry, cidade fronteiriça na Irlanda do Norte. Na altura contou com a ajuda do marido, o cantor country Bill Conlon, de Portaferry (condado de Down, na Irlanda do Norte). A decisão de Gray levantou suspeitas de políticos britânicos que questionaram a sua lealdade, o que Gray sempre contestou.
Em 1987, Gray regressou a Londres com a família e reingressou no serviço público, cuja carreira foi cimentando, ao mesmo tempo que se tornava incontornável nos corredores do poder. Em Maio de 2021, a “vice-deus” – um dos epítetos pelos quais é conhecida – assumiu o cargo de segunda secretária permanente no Governo, reportando directamente ao primeiro-ministro.
Oliver Letwin, ex-deputado conservador, ao referir-se a Gray, lamentou que o país seja “governado por uma mulher”. “Se ela não concordar, as coisas não acontecem.”
Considerada um “enigma” para muitos, Gray é alguém com quem se pode contar para um “conselho num momento de crise”, nas palavras do ex-primeiro-ministro Gordon Brown.
Em 2015, um perfil da BBC sublinhava a determinação de Gray em “não deixar rasto de um documento” e revelou a conselheiros especiais como destruir emails por “duplo apagão”.