Vamos começar pelas novidades. Vai entrar num filme de Jorge Paixão da Costa, chamado Cândido, sobre o antigo selecionador de futebol e jornalista Cândido de Oliveira. Fará a personagem de António Ribeiro dos Reis, também antigo futebolista e jornalista, cofundador do jornal A Bola
Já gravámos há uns meses. O que posso eu adiantar? O Paixão da Costa quis muito contar esta história porque é uma nova perspetiva que nós temos do Cândido de Oliveira, que eu acho que a maioria não tem – acho, não, tenho a certeza, porque fui falando com muitas pessoas ligadas ao futebol e elas não conheciam este lado do Cândido de Oliveira. Eu também não conhecia. Sei que era um ex-selecionador e ex-jogador, mas não tinha conhecimento desta história obscura da vida dele. Sabia apenas que era um nome ligado a uma Supertaça e acho que a maioria dos portugueses também só tem essa associação. É este lado que nós vamos revelar da história do Cândido que passa pelas ligações menos claras que ele tinha após a Segunda Guerra Mundial. Ele foi considerado até um espião ou contrapoder, falando de Estado Novo, porque ele passava informações e esteve na génese da criação de uma rede pró-Aliados – neste caso, pró-Inglaterra – na eventualidade de uma invasão do Hitler a Portugal e também de boicote das relações que o Salazar tinha, mais estreitas, com o Hitler. O Cândido, com a ligação que tinha aos Correios através das vias de comunicação portuguesas, queria criar uma via alternativa para bloquear a comunicação entre Portugal e os alemães e privilegiar a comunicação com os ingleses. Há outros personagens que vão ajudar o Cândido nessa ponte. O meu personagem, sendo muito amigo dele já desde a Casa Pia e sendo um militar em primeira instância, é alguém que vai pôr algum bom senso. O meu personagem era considerado um humanista, não era propriamente de direita ou de esquerda. Ele nunca teve nenhuma posição política, mas era um humanista em primeiro lugar. Estando militarizado, nunca tomou uma posição, mas ajudou o Cândido e a sua família – não teve filhos e a ligação mais próxima era a irmã – nos tempos em que o Cândido esteve no Tarrafal. Ninguém sabe disto, é uma situação inédita, um selecionador nacional foi um preso político. Foi acusado de espionagem. E, mesmo assim, depois de sair do Tarrafal, ele foi selecionador nacional. E, portanto, é este lado que o Paixão da Costa quer contar, este lado que ninguém conhece do Cândido de Oliveira.

Vai ser uma obra surpreendente para as pessoas?
Surpreendente no sentido em que as pessoas não conhecem a história. Nós temos três jornais desportivos, que é uma loucura. Ninguém fala da crise da imprensa futebolística – já nem vou dizer desportiva, mas futebolística. Fala-se das outras crises, mas parece que o futebol passa completamente ao lado destas crises, destas dificuldades que a imprensa, neste momento, está a atravessar. Porque o futebol é capa de todos os jornais. Mesmo nos jornais não desportivos há sempre na capa uma referência a um desporto e, normalmente, é o futebol. Este filme vem surpreender porque as pessoas vão ao cinema com o isco do futebol, digamos assim, e, de repente, vão levar com uma situação política, uma situação pós-guerra, pré-Guerra Fria. E também das dificuldades que as pessoas passavam no Estado Novo e do conflito interior que algumas personagens com poder tinham – neste caso, o Cândido, porque tinha poder, não deixava de ser o selecionador nacional de futebol, e também o meu personagem. Isso também vai levantar dúvidas. O meu personagem, embora fosse apolitizado, era alguém que tinha influência na atividade militar e na atividade civil. Ele era muito influente no Benfica, no início, quando o Benfica surgiu.

É um assumido adepto do Benfica. Deu-lhe um prazer especial fazer também esta personagem por ser de um antigo jogador do Benfica?
Não, não. Sou um adepto fervoroso do Benfica, mas sou capaz de ir ver um jogo de futebol com um amigo do Sporting ou do FC Porto. Não tenho nada essa rivalidade. Não são inimigos, são adversários que me estimulam a ser melhor, e é assim que eu vejo o futebol, é assim que vejo o desporto. Agora, estimulou-me no sentido em que pesquisei muito sobre este personagem. Só há uma biografia, muito pouco divulgada, sobre o Ribeiro dos Reis, mas foi muito interessante. Primeiro, como benfiquista, fiquei a perceber… porque fala-se muito do Cosme Damião como um dos principais fundadores mas, de repente, há três, quatro, cinco personagens muito importantes na estrutura do início do Benfica, como é que o Benfica surgiu, e depois perceber as polémicas das datas de fundação do Benfica, a fusão dos dois clubes. Foi muito interessante ver. Na altura foi o surgimento também do futebol em Portugal e também o surgimento de grandes coletividades, que era onde as pessoas legalmente se podiam juntar, camuflando a sua atividade política, e o futebol teve essa importância também. Hoje em dia, ainda se faz a separação entre o desporto e a política, mas o desporto, nos dias que correm, também tem essa função política de passar mensagens, seja de fairplay, contra o racismo ou mesmo mensagens políticas, agora, com a guerra, com os minutos de silêncio, com as chamadas de atenção, com as mensagens que alguns jogadores passam quando fazem golos. Ainda bem que o desporto não é apenas atividade física.

Quando vamos poder ver Cândido nas salas de cinema?
Não sei, não sei se será este ano. Estas coisas são sempre uma incógnita. Era interessante que acontecesse ainda este ano, dado o contexto político e desportivo também, mas, francamente, não há datas.

Tem estado em filmes e séries ligados ao desporto. Na série Eleitos, da Opto, o tema é o mesmo. Há aqui alguma coincidência?
É pura coincidência. Quando estou a trabalhar num projeto, não o leio todo. Estou dentro do meu personagem, por opção. Há alguns projetos em que faço questão de ler a peça toda, de falar com os argumentistas, ter uma noção geral do que toda a gente está a fazer. Em determinados trabalhos, acho que a ignorância é amiga do trabalho. Se o personagem não tem determinada informação, porque hei de eu ter? Muitas vezes, isso só me contamina. Portanto, é opção, às vezes, eu não saber o que um personagem pensa, não saber por onde é que um personagem vai, em que direção vai a história. Muitas vezes faço de propósito para não querer saber, precisamente para não me contaminar. Limito-me a ter a informação de que o meu personagem precisa. Agora, em relação aos Eleitos, é pura coincidência eu estar a fazer esta série ligada à alta competição. Nesta série, segundo percebi, porque o meu personagem é um pequeno personagem que faz de porteiro que controla as entradas e as saídas dessa academia de alto rendimento, e há várias questões que se passam nessa academia, acho que a questão mais explorada é o doping. As dificuldades pessoais e de treino que os atletas têm, seja através da alimentação, seja através da pressão das provas, seja através da dificuldade financeira quando têm provas olímpicas, dos apoios. O nome ilustra as personagens que, fisicamente, são eleitas por cada país para o representar. Em relação a isso, nós estamos muito à frente, porque Portugal, apesar de tudo, continua a ter campeões da Europa e campeões do Mundo em várias modalidades, não só campeões importados, e bem. Como tivemos o caso de Cuba. Não tenho esse estigma, acho que o importante é a nacionalidade, é representarem Portugal. Não interessa onde nascem. Nós, sendo um país de emigrantes e que colonizou durante anos e anos países africanos e o Brasil, quer dizer, acho que não faz sentido nenhum falarmos em nacionalidades se as pessoas nascem aqui ou onde quer que seja. Nós, apesar de tudo, conseguimos fazer milagres com os poucos meios, poucos apoios que os atletas de alto rendimento têm. É muito pela força de vontade e não tanto pelas condições, e, mesmo assim, conseguimos obter medalhas de uma forma tão pontual. Esta série tenta falar dos problemas de bastidores que os atletas de alta competição têm.

Entretanto, continua n’A Máscara, que já vai na quarta temporada. Tomou-lhe o gosto?
Olhe, nunca fiz nada deste género. Sou júri de um programa de talento, seja lá o que isso for. Isto não quer dizer rigorosamente nada, no sentido em que é puro entretenimento sem nenhuma pretensão de ser o que quer que seja. É pura brincadeira.

Mas diverte-se, isso nota-se.
É a quarta edição. Aquilo não é direto, é o chamado live-on-tape. Isso retira um bocadinho a pressão do que nós estamos ali a fazer, claro, mas um live-on-tape não deixa de ter alguma pressão. Nós não paramos o programa se nos enganarmos ou dissermos alguma coisa menos apropriada. Via muito programas ao domingo e ao sábado à noite como o 1, 2, 3, os Jogos sem Fronteiras. Ia a correr para casa para ver estes programas de propósito. E com tantos programas tóxicos que existem no prime time dos canais generalistas – e, quando falo de programas, estou a falar de reality shows que exploram sobretudo o lado menos positivo do caráter das pessoas, que é depois empolado e dá audiências -, eu considero-me muito afortunado por fazer um programa que não causa nenhuma aflição nas pessoas e promove o diálogo em casa, promove o jogo, promove a pesquisa para saber quem são aquelas personalidades, a biografia daquelas personalidades, umas ligadas ao desporto, claramente outras mais ligadas ao entretenimento e ao teatro e à televisão. Sim, divirto-me muito, e orgulho-me muito de estar a fazer um programa de entretenimento no prime time que promove relações positivas entre as pessoas, e isso, nos dias que correm, é muito raro.

Costuma utilizar as redes sociais para comentar os temas da atualidade do país. Criticou Pedro Passos Coelho quando era primeiro-ministro, agora sucedeu o mesmo quando António Costa se demitiu. É um cidadão desiludido com a classe política em Portugal?
Não, não, não, de todo, não sou um cidadão desiludido. O facto de criticar… sou um cidadão ativo, não estou de todo desiludido… Não estou desiludido com a democracia portuguesa. A pergunta foi se eu estou desiludido com a classe política?

Sim.
Claro que estou desiludido com a classe política, mas também estou desiludido comigo porque eu também faço parte da política portuguesa. Não consigo diferenciar a minha atividade, a sua atividade enquanto jornalista, e não ter uma opinião política sobre o que se passa à minha volta. Eu também voto, tenho a minha opinião, vejo telejornais, vejo congressos, vejo, enfim, o que acontece no meu país, e não consigo… Por exemplo, às vezes, e falando de redes sociais, as pessoas dizem que os atores ou os artistas não deviam meter-se nas opiniões políticas, não deviam opinar. E eu não vejo nenhum fundamento nisso, porque em primeiro lugar, antes da minha profissão, sou um cidadão que paga os seus impostos. Tenho direito ao meu cartão de cidadão, ao meu cartão da Segurança Social. Em primeiro lugar, eu devo aos outros cidadãos o escrutínio sobre aqueles que me representam e qual é a avaliação, não só de quatro em quatro anos, como também ao longo de todo o ano. Se forem às minhas redes sociais, eu permito-me falar de tudo, e acho muito perigoso quando as pessoas têm necessidade de ter cuidado, se devem ou não devem manifestar a sua opinião. Já manifestei a minha opinião em algumas alturas e, passados uns dias, mudei de opinião. Há um amigo meu que diz que eu vou com muita sede ao pote, que eu, às vezes, digo coisas que não devia dizer, mas a mim incomoda-me muito o silêncio. Prefiro que as pessoas se enganem e digam disparates a que fiquem em silêncio. O silêncio é a coisa mais perigosa que nós temos nos dias que correm. As redes sociais tornaram-se, nos últimos anos, um megafone gigantesco em que as pessoas, como é o meu caso, que têm oportunidade de ser vistas, de ter uma grande audiência, não podem desperdiçar com coisas banais do dia-a-dia como “olhem, eu a beber um café, olhem os meus sapatos tão giros”. Independentemente da sua cor política, independentemente de a sua opinião às vezes estar errada, devemos usar as ferramentas que temos ao nosso alcance para provocar influência nas pessoas, e daí o termo que se usa muito nas redes sociais que é o influencer, esse estrangeirismo usado e que eu não percebo porque não se diz o influente, alguém que manifesta a sua opinião. Posso confessar que, quando o Instagram surgiu, a minha primeira fotografia numa rede social foi num elevador. Eu estava travestido com um primo meu a fazermos um casal, em que eu gozava com as fotos que as pessoas no início punham muito, era muito comum tirarem fotos nos elevadores, e eu tirei isso e criei a minha rede social para gozar com as fotos que as pessoas punham nas redes sociais. Houve uma altura em que mudei: foi quando percebi que a ferramenta era muito poderosa. Eu podia chegar a muita gente, e estar simplesmente a gozar com aquilo que os outros punham não chegava. Uso isso de todas as formas, seja para revelar um bocadinho da minha vida pessoal, seja para divulgar o meu trabalho, os meus interesses, filmar uma coisa que eu acho bonita e que gosto de transmitir às pessoas, dar a minha opinião política ou sobre o futebol ou sobre o meu conhecimento que eu sinta, que eu ache que deva manifestar às pessoas para perceberem porque tenho determinada opinião. Houve uma altura em que passei a usar as redes sociais com essa importância também. Fico triste quando algumas pessoas, algumas figuras dos diferentes quadrantes da nossa sociedade usam as redes sociais apenas por uma questão estética, ou de imagem, ou de fachada, ou exclusivamente para publicidade. Eu também uso para publicidade, atenção. Se forem à minha rede social, tanto posso fazer uma publicidade a uma Avis como, no dia a seguir, estou a fazer um post sobre Gaza. Não me choca e quem já me conhece há algum tempo e quem me segue não fica chocado com isto, porque se eu, num dia, estou a trabalhar e se, nesse mesmo dia, o governo cai… para mim, isso também é importante, eu também quero falar sobre isso. Há pessoas que têm muito cuidado com a estética da rede social; eu não tenho essa preocupação, às vezes é uma miscelânea de coisas. Já me chamaram à atenção – alguns colegas de profissão, amigos – que devia ser um bocadinho mais ponderado nas minhas manifestações, sejam elas quais forem. Faço aqui um mea culpa em relação às redes sociais porque, às vezes, falando no contexto atual, como fico um bocadinho triste pelo facto de alguns colegas meus não usarem este instrumento tão poderoso, se calhar, eu peco por excesso. Se tenho colegas meus que não falam num determinado assunto e que eu acho que deviam falar, então vou falar a dobrar. Acontece, acontece. Posso confessar que tem acontecido muito, sobretudo com o que se passa internacionalmente. E com o que se passa nacionalmente, com a queda do governo, com as polémicas em relação à forma como este governo se foi desmoronando, coisas na justiça que não estão clarificadas, a guerra dos 100 dias e a falta de envolvimento internacional numa questão que nós achamos que é local mas que nos vai afetar, ainda não sabemos exatamente com que dimensões. Portanto, quando vejo coisas que acho que são graves, manifesto-me e vou com muita sede ao pote. Prefiro pecar por excesso do que não pecar.

Recordo-me de que, quando estava no Golpe de Sorte, da SIC, chegou a questionar o caminho da série… e também disse que um dos seus maiores golpes de sorte foi não ter começado a sua carreira na interpretação nos Morangos com Açúcar. Estas duas situações estão entre os mea culpa a que se referia?
Não, não. Aí, digo a mesma coisa. Se bem me lembro em relação a Golpe de Sorte, que teve muita projeção na SIC, foi uma questão simples de mudança de horário e que prejudicou em termos de audiência. Eu tenho uma relação muito estreita com as pessoas que me dão trabalho e, logo na primeira abordagem, tal como eu gosto que sejam frontais comigo, sou muito frontal no sentido construtivo. Não tenho ego, não deixo nunca que o ego se intrometa numa frontalidade profissional, de maneira que isso está sempre presente nas primeiras relações e nas relações mais longas. Falando concretamente do Golpe de Sorte, devo ter dado essa opinião, em primeiro lugar, sobre o que eu achava. Como eu sou uma coisa à frente e a mesma coisa quando as pessoas não estão presentes, nesse caso, não faço nenhum mea culpa. Qual foi o outro exemplo?

Quando disse que um dos golpes de sorte foi não ter começado a carreira na interpretação nos Morangos com Açúcar.
[risos] Também não mudo. A técnica televisiva é muito tóxica para quem nunca fez nada, cria vícios que não são estimulantes para o trabalho de ator. E se tu não vais à procura de bases que contrariem esses vícios, que te acrescentem técnicas, ferramentas, para trabalhar os personagens noutro sentido que não seja só o sentido da câmara, ficas muito limitado. Eu disse o que disse porque, se tivesse começado nos Morangos com Açúcar, não teria discernimento para ir à procura de aprender mais coisas. E porque vi muitos colegas deslumbrados com a popularidade. Quando comecei a trabalhar, não foi nesse sentido, e para mim até foi um choque e isso não contribui em nada para o meu trabalho profissional, só traz aspetos negativos. E foi nesse sentido que eu disse que ainda bem que não tinha começado a fazer Morangos com Açúcar. Eu entrei na primeira temporada, que foi o maior boom e também de qualquer série em televisão da história recente. Teve muito impacto. Por isso é que digo que ainda bem que não entrei, porque não sei como seria o meu percurso, mas não acredito que fosse melhor.

Olhando para a sua carreira, tem feito mais séries e telenovelas do que filmes ou mesmo teatro. Isso deve-se aos convites que vai tendo ou tem mais a ver com a componente financeira?
Deve-se aos convites que vou tendo. A componente financeira é importante, sem dúvida, não sou hipócrita, mas em primeiro lugar tem a ver com os convites. E tem a ver, se calhar, com não conhecer as pessoas certas, estar há muito tempo sem fazer teatro. Já não faço teatro há três anos. Eu, ultimamente, para fazer mais teatro, tenho falado diretamente com as pessoas a dizer que estou disponível: “Olha, atenção, se tiveres um projeto futuro conta comigo.” Tenho feito isto com várias produtoras, vários encenadores, várias companhias de teatro, e, em primeiro lugar, eles ficam surpreendidos, agradecem, não sabiam. Porquê? Porque eu não tenho agente. Já passei por quase todas as agências em Portugal mas, neste momento, não tenho agente. Tudo isto junto, e o facto de não fazer teatro há muito tempo, vou desaparecendo da esfera teatral. É só aspetos negativos que não contribuem para os convites surgirem. Eu tenho tido convites pontualmente mas – vou ser um bocadinho politicamente incorreto – nos dias que correm, o que me interessa mais são as pessoas com quem vou trabalhar. Mais do que o papel, é a relevância do papel, o impacto, em que canal. Interessa-me trabalhar com pessoas novas, com pessoas que admiro, quer profissionalmente, quer em termos pessoais, pessoas que me vão acrescentar e estimular. Isto é um bocadinho arrogante da minha parte, admito, mas quero evoluir em termos profissionais. E, às vezes, alguns convites que surgem, ora para teatro mais comercial que eu sei que não vão ser trabalhos muito estimulantes… e é nesse sentido que, se calhar, eu também não faço mais teatro. Isso não é o principal mas, tudo junto, faz com que eu não tenha feito mais teatro.

É cada vez mais difícil ser ator em Portugal?
[longa pausa] Temos de ir por partes. Eu vejo cada vez mais jovens atores em números que, se calhar, nunca aconteceram, quer em televisão, quer em teatro, a saírem da Escola de Cascais, a saírem do Conservatório, a saírem da Act, Chapitô também. Continuamos a ter, infelizmente, demasiadas escolas para o mercado de trabalho, e isso, depois, reflete-se na falta de trabalho para os atores mais velhos. Ainda não é o meu caso. A pandemia veio amplificar ainda mais esta dificuldade dos atores mais velhos, em teatro mas, televisão, então é gritante a falta de trabalho para os atores mais velhos. Não consigo responder logo um sim ou um não à pergunta. Depende dos atores, da idade, se está a fazer teatro ou televisão. Só para dar um exemplo: às vezes, de tempos a tempos, em televisão há passatempos para as pessoas participarem em telenovelas ou em séries, pessoas que não têm nenhuma formação. A partir daí está-se a retirar trabalho a um ator, a alguém que estudou ou que investiu no seu percurso profissional. E está-se, por outro lado, a criar uma ilusão em alguém que não tem jeito, ou até pode vir a ter mas não está a começar da melhor maneira. Para responder à pergunta de uma forma mais concisa, há já, há muitos anos, uma descaracterização da profissão de ator, porque eu ainda me lembro quando entrei para esta profissão: ainda se falava na carteira profissional e a carteira profissional desapareceu. O que era a carteira profissional? Além de estar ligado a um sindicato, dava um certo apoio corporativo, criava regras de mercado, regras que defendiam os dois lados, empregadores e empregados. Mas, sobretudo, criava ou dizia como criar profissionais para aquela atividade. Só a partir de um determinado número de horas de trabalho efetivo é que se tinha direito a carteira profissional de ator. E isto desapareceu, embora os sindicatos se mantenham, com maior ou menor relevância, mas, na atividade artística, nunca teve grande força, embora ultimamente tenha ganhado mais membros. Ganhou mais força também pelas dificuldades, a pandemia veio unir mais as pessoas nesse sentido. Mas o que há, efetivamente, é uma total descaracterização da profissão. Tu não sabes definir de uma forma concreta e inequívoca quem é ator, quem não é ator. A carteira profissional era um instrumento que, com certeza, iria facilitar a minha resposta à pergunta, iria responder melhor às necessidades de nós, artistas, e até para o público, de maneira que o trabalho apresentado tenha mais critério.

No fundo, considera que a velha geração está a ser bastante esquecida?
Não é de agora, mas isso reflete-se também na publicidade. O teatro também sempre teve menos papéis para personagens mais velhos. Em televisão, no cinema, na publicidade, é gritante. Às vezes vejo anúncios, personagens em cinema e em televisão que são notoriamente escritos para atores mais velhos, e as personagens são passadas para idades mais baixas para obedecer a uma qualquer lei de mercado que é completamente subjetiva. É uma questão de gosto. Mas isso tem a ver com a nossa dificuldade em lidarmos com a morte, com facto de termos fim, com o facto de termos rugas, de envelhecermos e termos cabelos brancos. É um sinal dos tempos: parece que fugimos às questões fundamentais. Houve uma altura, no percurso neste planeta, em que éramos muito focados nas questões fundamentais; hoje em dia, as questões fundamentais quase não existem. As pessoas não querem saber da morte, não querem saber da velhice e, depois, isso reflete-se na maneira como nós tratamos os nossos atores mais velhos. Mas acho que é transversal à sociedade portuguesa. Nós tratamos muito mal os nossos idosos: reformados, os nossos avós, doentes esquecidos em hospitais. A minha profissão não é diferente do que se passa na sociedade portuguesa e, felizmente, temos a Casa do Artista.

O que ainda não fez e tenciona fazer?
Tenho esse desejo quase nostálgico de fazer à séria uma tragédia grega que estudei no Conservatório, mas gostava de ter oportunidade de fazer mais teatro, sem dúvida.

Para terminar, tem a ambição de fazer uma carreira internacional, de mais a mais com o surgimento das plataformas de streaming?
Não. Sou um bocadinho preguiçoso nesse sentido. Já fiz um filme no Brasil e percebi que as dificuldades são exatamente as mesmas que nós temos. Com a pequena diferença, entre aspas, de que, lá, as produções são muito maiores, há muito mais dinheiro, o financiamento é muito maior. No Brasil, as grandes empresas estão todas ligadas a grupos de teatro e também ao cinema. Gostava que nós fizéssemos em Portugal, em português, porque sou um defensor da nossa língua, da nossa cultura, mas nunca tive essa ambição de trabalhar lá fora, ora porque já aconteceu e as dificuldades são as mesmas, ora porque sou um bocadinho preguiçoso nesse sentido. Algumas concessões que devia fazer para me expor e, falando de agenciamento, se eu fizesse cedências em questões que, para mim, são fundamentais… Volto àquela questão daquele meu amigo jornalista que diz que vou demasiado cedo ao pote. Mas há questões que eu acho que são fundamentais na minha profissão de que tenho alguma dificuldade em abdicar.

Está a falar do quê?
Estou a falar do agenciamento em Portugal. Tenho dificuldade em perceber os moldes em que os agentes em Portugal funcionam. Já passei por quase todas as agências e não tenho agente neste momento, e a minha discussão com os agentes foi sempre não perceber porque é que as comissões dos agentes em Portugal são quase tabeladas na nuvem. Não existe nenhuma tabela. Há umas agências que cobram 30, outras cobram 40, e não se percebe porquê. Sou defensor de que, como o nosso trabalho é tão específico no tempo, no meio – internet, televisão, cinema -, cada trabalho tem um escrutínio, um valor. E é o que acontece. Eu, como ator, não tenho uma tabela: negoceio o meu valor e qualquer agente em Portugal negoceia o valor de um ator. Isso tem a força que tem. Às vezes, a minha imagem tem uma força, o meu trabalho tem uma força; outras vezes, o meu agente tem mais força do que a minha imagem; e tudo isso é valorizado numa negociação. E eu respeito esta subjetividade; onde eu não concordo no agenciamento em Portugal é que as tabelas são fixas, independentemente do trabalho que se faz, se é um trabalho a seis meses, se é um trabalho de uma semana… Tudo é cobrado a 30/40%. E os agentes não abrem mão, e eu falo disso com propriedade. Tenho essa discussão com vários atores que concordam comigo mas, por uma questão de receio, não se mexem para haver aqui uma negociação. Ter agente é uma coisa benéfica. Eu, se calhar, não faço mais teatro e não faço mais cinema precisamente por isso. Já me disseram realizadores, já me disseram agentes que não sou, muitas vezes, apresentado nos castings. E isso é importantíssimo. É como se não existisse. Tenho esta luta há muitos anos com vários agentes. Não quero estar sozinho, preciso de agentes, tal como os agentes precisam de atores. Agora, eu acho é que deve haver uma flexibilização na negociação dos cachês dos atores e os agentes não abrem mão, e eu percebo porquê, das percentagens exageradíssimas que cobram aos atores. Estamos a falar de valores em publicidade, em teatro, em televisão, em cinema, de 20/30/40%, às vezes menos, outras vezes mais. Dos atores que estão a aparecer agora, que não têm força negocial, os valores muitas vezes cobrados pelos agentes são pornográficos. E pronto, esta é uma batalha longa. Eu sou prejudicado profissionalmente por isto, pelo facto de não ter agente. Mas já falei com vários atores sobre isto, e eles percebem, é uma questão de bom senso, mas, lá está, por não haver conversa, por não haver diálogo, por não haver abertura, por falta de coragem, por interessar às agências manterem estas margens de lucro, nada acontece. Esta é uma questão muito pouco falada. Houve algumas conversas, mas são muito pontuais, são muito pontuais. E há uma grande força por parte dos agentes para que isso não aconteça, para que não haja muita mudança neste sentido, mas volto a dizer: se eu negoceio o meu valor a cada trabalho que faço e ele tem flutuações -, principalmente, nos dias que correm, em flutuações até para baixo -, porque é que os agentes não negoceiam a sua margem de lucro com os seus atores? E não negoceiam. Posso dizer que a mesma percentagem que existe há 20 anos mantém-se ou subiu. Aí, a inflação não mexe, e é uma coisa que não percebo. Não compactuo e vou saltando de agente em agente porque, muitas vezes, tenho fogachos e percebo que estou a perder trabalhos, mas, passado um tempo, como vejo que estou a ser prejudicado, que não vejo mudança, que não vejo flexibilização… Muita gente, muita gente já me apresentou o argumento de que “isso não é justo para os teus colegas”. Mas eu acho que cada caso é um caso. Da mesma maneira que, num trabalho de longo prazo, a percentagem que o agente cobra deve ser menor, se calhar, num outro trabalho em que o ator faz apenas uma sessão, a margem devia ser maior. Isto faz sentido na minha cabeça. Só não faz, volto a dizer, por uma questão de lucro, de acomodação, porque as forças que estão do outro lado sempre se manifestaram maiores do que os artistas. Os artistas portugueses nunca tiveram força, e isso também se reflete nos valores para a cultura. A cultura em Portugal… tendo em conta a relação orçamental com o valor per capita que gera, já para não falar na questão de defender a nossa cultura e de criar riqueza e de criar ensinamento e de contribuir também para o ensino, não consigo diferenciar o Ministério da Educação do Ministério da Cultura, já para não falar disso. Houve uma altura em que o Ministério da Cultura desapareceu, sempre foi um parente pobre. Os agentes também se aproveitam dessa desunião, dessa falta de diálogo que existe entre os artistas.

Para finalizar mesmo: passado este tempo todo, nunca se arrependeu de ter deixado o curso de Direito e ir para a representação?
Não, nunca. Com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor canastrice e com trabalhos mais ou menos conseguidos, com trabalhos de que me orgulho, outros que nem por isso… vou fazer 46 anos, já dá para perceber quais são as ferramentas e aptidões que tenho. Não consigo fazer nada na vida melhor do que ser ator. Não me vejo a fazer mais nada. Portanto, ainda bem que saí de Direito para teatro. Eventualmente, tenho muito jeito para bricolage. Posso confessar que, com os valores que se cobram para trocar candeeiros, já pensei seriamente em fazer biscates. Sou bom nisso, nos trabalhos manuais. Uso bem o berbequim, mas sou mais articulado com as palavras.

Foto: Cristina Bernardo