Maria Antónia Oliveira foi desafiada a biografar Alexandre O’Neill, de quem um dia disseram ser o encontro entre o erudito e o popular para criar o belo. No ano do centenário do seu nascimento, a Assírio & Alvim reedita a biografia do poeta, “Alexandre O’Neill. Uma Biografia Literária”, revista e aumentada. Ponto de partida para uma conversa com a biógrafa sobre esse ‘encontro-descoberta’ de um homem temperamental que praticava a “autodepreciação na poesia e na vida”.

Quando teve o primeiro contacto com a obra de Alexandre O’Neill?

O primeiro contacto aconteceu na pré-adolescência. Foi a minha irmã que me ofereceu uns versos do O’Neill dentro de um livro no Natal, e se não me falha a memória, era um livro do Lewis Carroll, mas posso estar enganada. E lá dentro vinha uma parte de um poema dele. Esse foi o primeiro contacto; “o que é isto?”, pensei. [sorriso] Mais tarde, estudei Literatura, mas o Alexandre O’Neill não era um poeta que se estudasse. Na adolescência eu lia bastante e o O’Neill foi um dos muitos poetas que li, não reparei especialmente nele em relação a outros. Depois, quando estava a fazer o mestrado, já em Lisboa, escrevi um ensaio para o Prof. João Barrento – de quem gostava muito e que foi um dos meus grandes mestres – sobre o O’Neill. O mestrado versava sobre vanguardas e ele gostou muito do trabalho e, um dia, dois anos volvidos, estava a ler o JL [Jornal de Letras] e vi que havia um concurso a um prémio literário e resolvi enviar esse pequeno ensaio. Ganhei o prémio e o texto foi publicado. Digamos que este foi o primeiro contacto a sério com o O’Neill, a estudar os seus poemas e a escrever sobre eles. Chamava-se “A tristeza contentinha de Alexandre O’Neill” e voltei a ele mais tarde, já com a intenção de o biografar.

O que a motivou a escrever esta biografia?

Partiu de um convite e partiu, também, de uma espécie de vontade de experimentar outras formas de escrita que não o ensaio. A encomenda foi-me feita em fins de 1999 e como morreu novo – 61 anos –, muitos amigos estavam vivos, pois comecei a escrever 13 depois da sua morte, e comecei por aí. Uma pessoa levava à outra, e consegui construir uma rede de pessoas que fui entrevistando, algumas delas várias vezes, e esse foi o meu principal material para a biografia. Depois de falar com alguns desses amigos do O’Neill, cheguei à primeira mulher dele, Noémia Delgado. Mas aconteceu-me uma coisa muito estranha, logo no início. Ainda havia listas telefónicas e, por tira-teimas, fui ver à lista “O’Neill, Alexandre”, e ele estava lá. [sorriso] “Mas o que é isto…? O homem já morreu”. E o número remetia para uma casa na rua da Saudade, ali ao pé do Castelo [São Jorge]. Liguei várias vezes e nunca atenderam, até que um dia, atendeu a mulher dele, a primeira, que regressou àquela casa quando eu estava a começar a escrever a biografia. Foi a primeira pessoa que poderia ter documentos dele, sobre ele, pois era herdeira. O O’Neill tinha dois herdeiros: o filho Afonso e a ex-mulher Noémia. Mas não tinha nada! Enfim, tinha umas fotografias, uma carta ou outra, por isso resolvi basear a minha narrativa sobre aquilo que os amigos me contaram sobre ele. E também porque ele tem uma série de poemas – que estão disseminados por vários livros – que se chama “Amigos Pensados”. E eu usei um pouco essa estratégia, ou seja, peguei nesses poemas e construí a biografia a partir do que disseram os amigos dele, que eram pessoas muito importantes na sua vida. Ele dizia que não trocava acabar um soneto por um jantar entre amigos. A vida era muito importante para ele!

Escrever uma biografia é muito diferente de escrever ensaio ou ficção. Implica um processo de pesquisa que pode ser desafiante. Passou por isso?

Comecei por fazer uma série de entrevistas, mas também tive de pesquisar documentos. Sabia que ele tinha trabalhado na Caixa de Previdência, logo, fui lá pedir o processo; tive de identificar as diferentes moradas que teve em Lisboa – até porque Lisboa também é uma personagem muito importante no meu livro. E voltei às listas telefónicas, porque ele não tem propriamente um nome vulgar. Fui ver nos 50, 60, 70 e 80 onde morava. Também viveu em casas onde não tinha telefone, mas consegui criar um roteiro. Mas a verdade é que pesquisar em biografia não é parecido com fazer pesquisa na área de História, pelo menos quando o ‘objeto’ de estudo é recente – é uma pesquisa mais criativa. Por exemplo, para esta edição, há uma casa no bairro do Arco do Cego, onde ele viveu, sobre a qual os amigos falaram muito. “Íamos para o sótão, ele escondeu lá mas pessoas da PIDE, estivemos lá a escrever poemas…”. Isto no final da adolescência do O’Neill, e eu não percebia bem como é que ele metia aquela gente toda no sótão sem os pais verem, porque os pais não eram propriamente oposicionistas ao regime. O pai dele tinha o retrato de Salazar na sala. Então, fui lá e percebi: o sótão tem uma entrada independente. [sorriso] Isto também é pesquisa em biografia, mas em História não. Ou seja, passa também por seguir os passos do biografado, é importante saber por onde ele andou. Para mim, foi importante porque há ali uma espécie de fantasmagoria, viver entre dois mundos: era o meu e também era o tempo dele.

Fez referência à PIDE e também ao posicionamento dele, do pai e família. Como foi a vida de O’Neill nos anos do Estado Novo?

Ele era um oposicionista, mas não era um militante. Não era, parece-me a mim, por temperamento. Era uma pessoa muito individualista e não gostava muito de grupos. Ainda houve uma altura em que se aproximou do MUD Juvenil, a seguir ao surrealismo, mas durou muito pouco e foi uma aproximação vaga e diletante. Não era um partidário empenhado – na altura não havia partidos –, mas era um oposicionista até ao 25 de Abril. Chegou a ser preso de uma forma algo caricata. A Maria Lamas regressava a Lisboa e foi um bando de gente esperá-la ao aeroporto, como o Cardoso Pires, e a PIDE prendeu toda a gente que esperava por ela no aeroporto. Foram todos ‘dentro’, crianças incluídas…! O que me contaram foi que os elementos da PID iam perguntado “Vem esperar a Maria Lamas? Então é ali naquela sala”. Não sei se foram logo para Caxias ou se ainda passaram pela António Maria Cardoso, mas o O’Neill ficou uns dias em Caxias e disseram-me que andava em pijama. Isto não tem só a ver com o ser oposicionistas, mas sim com o humor e o surrealismo. Não é um “sérieux”, como dizem os franceses. Depois foi libertado e, a partir daí, passou a ser sempre vigiado pela PIDE até ao 25 de Abril. Ele foi sempre um homem de esquerda e, a seguir ao 25 de Abril, era predominantemente anti-gonçalvista. Bem, no 25 de Abril, ele nem estava em Portugal, mas sim na Suíça. Quando o aeroporto de Lisboa reabriu, voltou, e continuou a dar-se com os amigos de sempre. Uns eram de esquerda, outros da extrema-esquerda e outros ainda de direita. No fundo, ele era um moderado, em termos políticos. Em termos pessoais não era uma pessoa moderada; por temperamento era uma pessoa de excessos.

Na biografia, Lisboa é como que uma personagem. A pesquisa que fez permite perceber as razões dessa relação tão especial entre O’Neill e Lisboa? Moldou a sua escrita?

Bem, O’Neill é um poeta de Lisboa – é um lugar-comum, mas há lugares-comuns dos quais não se pode fugir. [sorriso] Como Cesário Verde é um poeta de Lisboa. Como Pessoa também é um poeta de Lisboa. A cidade está em muitos poemas de O’Neill, que é um lisboeta de ‘gema’. Ele diz: “Que faço eu aqui, que fazemos, Lisboa?”. Ele fala com a cidade… mas a cidade não moldou a forma – a cidade dá-lhe o tema e tem um olhar sobre ela que é muito dele, surrealista e alucinatório. Aliás, como o Cesário, que é outro alucinado, que olha para os tomates e vê corações! [sorriso] São dois poetas que, parecendo muito realistas, estão longe de o ser. A forma de ver a realidade é muito “O’Neilliana”. Ele era míope, via bem ao longe e ao perto não, ou seja, quando chega ‘ao perto’ as coisas ficam desfocadas e isso passa muito para a poesia dele. De modo que, quando fala de Lisboa – e mesmo de Portugal, que ele personifica como “país engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano”. Ele personifica coisas inanimadas e isso é muito dele, não é Lisboa que lhe ‘dita’ essa vontade. Acho que Lisboa é uma grande inspiração para ele, é um cenário muito presente na poesia dele, sem dúvida.

Alguma coisa a surpreendeu em particular aquando da construção da biografia?

O mais inusitado não foi tanto o que descobri sobre ele, mas o que descobri sobre mim. Ou seja, biografar é escrever sobre o outro – que é algo que hoje não está nada na moda [sorriso]. É um pouco ir contra a corrente escrever sobre o outro, porque toda a gente quer escrever sobre si própria. O que eu descobri é que biografar é uma espécie de descoberta de si próprio. Claro que não era esse o meu objetivo, nem o de outros biógrafos. Não o fazem para se descobrir a si próprios. [sorriso] Nada disso. É uma espécie de consequência que, às vezes, até pode ser desastrosa! Há coisas sobre nós próprios que às vezes é melhor não saber. No meu caso, descobri aspetos de personalidade com os quais me identificava e que me sossegavam na minha aneira de ser – a independência que ele tinha em relação ao meio literário, não se levava muito a sério… São aspetos comuns a ambos. Na altura em que escrevi a primeira edição da biografia, já há muito tempo, não tinha bem essa noção. E, então, descobri que afinal é possível ser assim. Não tenho que ir aos lançamentos todos, etc. E também descobri, quando acabei de escrever a biografia, que estava muito mais ‘velha’. Tinha amadurecido um pouco por ação de escrever o livro, não pela ação do tempo, da passagem do tempo. “Velha”, madura, para mim são praticamente sinónimos.

Podemos dizer que foi um estímulo acrescido…

Na verdade, o que mais me apaixonou em tudo isto foi o próprio ato de biografar. Não tanto ser o O’Neill – atualmente estou a trabalhar na biografia do Cesário Verde – é o próprio processo que me apaixona e me interessa, embora às vezes seja bastante árduo… [sorriso] Sobre o Cesário, por exemplo, é muito difícil, porque não há nada sobre ele, estamos a falar no séc. XIX, a casa dele ardeu, não há documentação, não há amigos para entrevistar, não há nada… Mas é um desafio e é muito interessante! No caso do O’Neill, tenho uma mesa onde ponho tudo: entrevistas, documentos vários, processos da Caixa, fotografias… E tenho que dar vida a tudo aquilo. Isso, para mim, é muito estimulante!

Alguma vez escreveu ficção?

Nuca escrevi ficção pura. Claro que escrever uma biografia, sendo uma narrativa factual, tem muitos aspetos semelhantes a um romance. Tenho de pensar quem é o narrador, onde vou começar a narrativa, como vou gerir o tempo, os ritmos, a linguagem. E, depois, como os factos já estão ali, só tenho de me ocupar da forma.

A biografia é um género literário que, nos últimos anos, ou seja, já depois da 1ª edição da biografia, tem despertado maior interesse junto do público português.

Sim, de há uns anos para cá o interesse tem aumentado, e eu fiquei encantada quando foi anunciada a coleção de biografias literárias. Por isso, continuo entusiasmada e vou lendo sobre essa tendência. Mais, não só esse interesse cresceu, como eu própria comecei a ensinar biografia – ineditamente! [sorriso] Por minha vontade e pela boa receção por parte da Academia, comecei a lecionar biografia na universidade – o que é algo que não existe em mais lado nenhum na Europa. Salvo na Inglaterra, claro, que é a pátria da biografia. Aí, há várias pessoas a ensinar biografia na Academia, designadamente o Richard Holmes. Aqui, em Portugal, passou a haver e tenho alunos que começaram a escrever biografias nas minhas aulas… Acho, de facto, que há mais interesse, não só em escrever, mas também em ler biografias.

A reedição é lançada no centenário do nascimento de Alexandre O’Neill, o que gera maior mediatismo. Quais são as suas expectativas sobre a (re)descoberta do autor?

Tenho a expectativa de que este livro chegue a pessoas mais jovens. A primeira edição foi há 17 anos! [sorriso] O livro estava esgotado há quatro anos e havia pessoas que o procuravam… Entretanto, fiz o filme com o João Botelho [“Um Filme em Forma de Assim”] e, nessa altura, a procura aumentou e ele continuava indisponível. Então, foi-me proposto reeditar. E embora saiba que continua a ter procura, gostava, acima de tudo, de chegar ao público mais jovem. Quem hoje tem 24, 25, 26 anos, na altura em que foi lançado tinham cinco ou seis anos. Até porque O’Neill não é um poeta datado, desatualizado. Diria que agora está mais na ‘moda’ do que quando escrevi a biografia, em 2007. Levei cinco anos a escrevê-la, pois estava a dar aulas, mas recordo-me de algumas pessoas – leitores – me perguntavam, “mas tu gostas do O’Neill?”. Ele sofria um pouco a pecha de ser tido como um poeta menor, coisa que dizia de si próprio: “Eu sou um grande poeta menor”. Digamos que tem uma estratégia de autodepreciação, na poesia, na vida. Mas agora parece-me que está muito mais na moda.

Esta nova edição foi revista e aumentada. Pode dar-nos algumas pistas?

Sim, sim. Logo depois do lançamento da primeira edição, recebi duas cartas inéditas dele. E eu fiquei “com um melão”. [sorriso] Ainda por cima, uma das cartas era muito interessante, e foi escrita nos últimos anos de vida dele, e nela dizia que ia começar a escrever ficção. Claro que isso me interessou muito! Além de algumas pequenas informações factuais, mas o que me entusiasmou foi aquilo da ficção, romance! Ou seja, primeiro apareceram essas duas cartas, depois surgiu uma senhora com umas trinta e tal cartas de amor dele – uma senhora finlandesa que tinha tentado encontrar, mas cuja pista não dera em nada. Mais tarde, tive acesso às cartas de um grande amigo dele, António Manuel Batista, do fim da adolescência, e do Luís Pedreira, que era uma época em que existia um vazio. Tinha poucos elementos e não invento, pois não estou a escrever uma biografia ficcionada. E aquelas cartas iluminaram muito essa época, que corresponde às primeiras leituras a sério dele. Rilke, Stefan George [poeta simbolista alemão]… E ninguém fazia ideia de que ele andava a ler aqueles autores. Ou seja, ele não andava a ler nada do que seria “normal” – como os poetas neorrealistas –, mas sim poetas ingleses e alemães, duas línguas que ele não falava.

Há algum outro autor – excluindo Cesário Verde, que já está a trabalhar – que gostasse de abordar e que já tenha em mente?

Não. Porque estava a trabalhar na biografia do Cesário, para a qual tive uma bolsa da DGLAB e fiz uma residência na Fundação Eça de Queiroz, e tive de interromper para fazer a segunda edição da biografia do O’Neill – e que demorou cinco meses, pois não podia parecer que eram ‘metidas à força’ no livro. Com revisões de provas e tudo, por isso, o Cesário teve de esperar. E já estava ‘verde’ de ciúmes, verde mesmo!  Digamos que não consigo ter dois homens na minha cabeça ao mesmo tempo. [risos] Não consigo. Ou penso num, ou penso noutro. Quando conseguir, por fim, ‘arrumar’ o O’Neill, volto ao Cesário. E não consigo ver mais para a frente. A biografia é um trabalho muito obsessivo e exige uma imersão tão grande… E posso dizer que passo a vida a deparar com pessoas que podiam ser biografadas porque praticamente não temos nada [nessa área], mas não consigo pensar nisso enquanto não fechar o ‘capítulo’ que tenho em mãos – e esse agora é o Cesário.